Roberto
Bracco
Perseguição
em Itália
Título
original:
Persecuzione
in Italia
Primeira
Edição, Roma 1954
Segunda
Edição, Roma 1964
Tradução:
Hugo Castro |
Introdução |
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A Itália
sempre foi um país de violenta e algumas vezes cruel
intolerância religiosa. Através dos séculos milhares
e milhares de cristãos derramaram o seu sangue
generoso
pelo testemunho do Evangelho e muitas vezes
colónias inteiras de crentes foram mortas pelas armas
para tentar sufocar com a sua morte, a proclamação
da verdade. |
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Quando
falo da Itália, não me refiro ao poderoso Império romano
que desde Nero em diante organizou e conduziu as suas
sangrentas perseguições contra os cristãos; mas falo
exclusivamente das repressões exercidas sobretudo,
por influência do catolicismo oficial, desde a época dos
primeiros Valdenses aos nossos dias. |
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Este nosso
país, tão sensível aos problemas religiosos, nunca
gozou
infelizmente,
da liberdade conquistada por outros povos
e se arrastou, através dos séculos, e se arrasta,
também na nossa geração sob o peso das cadeias apertadas
pela igreja
católica à volta
da sua vida. |
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É lógico,
portanto, que também o nosso movimento encontrasse
desde o seu início, hospitalidade hostil e oposição
organizada. Antes, posso acrescentar, hostilidade mais acentuada
do que a manifestada em relação a outros movimentos,
que pareciam de menor perigosidade com respeito à igreja
católica. Apesar deste estado de coisas, as nossas igrejas,
porém, não sofreram uma verdadeira perseguição durante
muitos anos, e isto sobretudo por duas razões. A primeira
razão é constituída
pelo facto que por muitos anos a obra viveu em fase de
gestação: as igrejas eram poucas e os membros destas não eram
numerosos. A actividade do movimento não era por isso excessivamente
visível e notavelmente preocupante para os adversários do
evangelho. A segunda razão é constituída pela condição política
da nossa nação anteriormente ao ano de 1929. |
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O Estado
italiano vivia, nessa época, em aberto e oficial conflito
com a igreja católica, em consequência dos acontecimentos
bélicos de 1870 nunca sanados e nunca superados. O governo,
por conseguinte, estava
desvinculado de interferências ou influências das
hierarquias eclesiásticas e antes não raramente era induzido
a agir num espírito liberal abertamente em contraste
com os desejos da igreja católica. Estas duas razões, porém,
desapareceram espontaneamente nos anos imediatamente
anteriores à perseguição; o movimento, superado o período
de gestação, conheceu o seu rápido e vigoroso desenvolvimento
numérico e espiritual, e a situação política sofreu uma radical
transformação em consequência da Conciliação entre o Estado
e a igreja e do tratado lateranense, que da conciliação foi
a filiação natural. |
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O movimento
não podia mais passar despercebido e ao mesmo tempo
o governo não podia mais tolerá-lo incondicionalmente,
quando a nova situação política lhe sugeria satisfazer
o mais largamente possível os desejos e os objectivos
da igreja católica. A partir de 1929 começaram por isso
os sinais da incipiente
perseguição e se esta não teve início nesse ano, foi
somente porque a máquina burocrática governamental foi lenta a
pôr-se em movimento. Houveram, porém, casos isolados periféricos
de violenta intolerância que marcaram o princípio da batalha.
O conflito, no sentido rigoroso deste termo, estalou no
ano de 1935, pois foi no princípio desse ano que o então subsecretário
do Ministério do Interior (o ministro era o próprio Mussolini
que gostava de acumular cargos), após ter declarado nulo
o decreto de nomeação para ministro de culto ao pastor da nossa
comunidade de Roma, iniciou a sua enérgica acção repressiva. |
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O nosso
movimento nunca tinha sido oficialmente reconhecido
pelo Governo, e de todos os ministros de culto em
actividade, somente o da igreja de Roma tinha obtido um decreto
que lhe reconhecia o direito de exercer o seu ministério
espiritual e de presidir reuniões de culto públicas.
Ele, porém, gozava o privilégio de conceder delegações a
outros ministros assumindo a responsabilidade pela actividade
deles. Com a revogação
portanto do único decreto
concedido, o Ministério contestava ao mesmo tempo
o direito ao pastor da comunidade de Roma de exercer
o seu mandato espiritual e a todos aqueles que tinham sido
por ele delegados, a faculdade de realizar e presidir reuniões
de culto públicas. |
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As autoridades
periféricas de segurança pública tomaram imediatamente
providências
para intimar os proprietários
dos locais onde eram realizadas as reuniões e os condutores
das comunidades para não realizar mais reuniões de
culto. Quase todas as igrejas foram fechadas e permaneceram
somente abertas as poucas que por algumas semanas e alguns
meses fugiram à observação das autoridades de segurança
pública. Mas se os locais, destinados oficialmente ao culto
público, foram solicitamente fechados, as actividades dos fiéis
não cessaram. Imediatamente e com aquela prontidão que
representa um dos maravilhosos recursos do Espírito, as
comunidades se organizaram para iniciar a sua nova vida; a
vida em clima de perseguição. |
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A organização
das comunidades não foi uniforme porque cada uma
destas procurou a adaptação em relação às particulares
circunstâncias do ambiente. Nas cidades, por exemplo,
foi fácil ao princípio realizar reuniões de culto privadas
nas casas de habitação subdividindo-se em diversos grupos
nas várias zonas da própria cidade. Nos pequenos povoados,
ao invés, onde esta organização não podia passar
despercebida, procurou-se antes aproveitar
o favor dos campos longe das casas, ou a oportunidade
oferecida pelas longas noites da localidade; e assim as
reuniões ou eram realizadas em lugares
longínquos
e escondidos ou eram
realizadas em voz baixa em plena noite. |
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Este estado
de coisas não podia durar, porque os mesmos, que
tinham pedido a repressão do movimento, foram solícitos
em
informar as autoridades relativamente
à continuação da nossa actividade. Do Ministério do
Interior partiram então várias enérgicas circulares reservadas,
dirigidas aos prefeitos e aos comandantes da polícia,
com as mais precisas e detalhadas instruções acerca
das providências a adoptar-se em relação ao movimento e aos
fiéis, na eventualidade de se verificar o desenrolar de qualquer
actividade. Uma dentre estas circulares,
enfrentava de maneira particular
e resolutiva a questão aberta. Refiro-me à já famosíssima
circular n. 600/159 de 9 de Abril de 1935 assinada por
Buffarini-Guidi, que ordenava a dissolução e a repressão
de todas as comunidades e de qualquer actividade do nosso
movimento justificando a medida com a necessidade de salvaguardar
a integridade física e psíquica da raça. O regime fascista,
é preciso não esquecer, propugnava a diabólica filosofia
do super-homem e, portanto, aquela consequente da discriminação
racial. A defesa da integridade da raça representava por
isso um fenómeno político de importância vital na vida da
nação e os atentados à integridade da raça assumiam o aspecto
jurídico de delito político. O movimento pentecostal veio
por isso a encontrar-se no campo das actividades políticas
condenadas pelo regime e, coisa pior, veio apontado
como um movimento gerador
de diminuídos físicos e psíquicos, isto é, gerador
de doentes e loucos. Não é difícil compreender de onde partiu
o ataque como não é difícil identificar o motivo que inspirou
esta acusação antes que uma outra. |
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Tudo foi
organizado com crueldade e com astúcia maléfica.
Também a opinião pública foi habilmente manobrada em
benefício da perseguição. Uma prolongada campanha jornalística
desenvolvida pela imprensa totalmente submetida
ao governo, encarregou-se de cobrir de
opróbrio e de ridículo
todas as nossas comunidades: as mentiras mais despudoradas,
as insinuações mais audazes foram diabolicamente exploradas
para alcançar este objectivo. |
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Este imenso
campo de batalha em perfeito estado de guerra não
podia permanecer inerte; os ataques partiram bem cedo e cobriram
a frente de estrondo ensurdecedor: veio a perseguição.
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Estes
oito anos podem ser reconstruídos dia por dia, porque
mesmo hoje, que nos aparecem à distância, nos aparecem
nos detalhes mais vivos. Como esquecer os lentos
e furtivos êxodos para os campos
longínquos para reunir,
com o favor da noite, longe dos olhos indiscretos? E
como esquecer as reuniões de culto solenes e trepidantes
, realizadas no coração das cavernas ou das grutas? Como
esquecer as repetidas partidas, cheias de comoção e de pranto
que exilavam os irmãos, para longe das comunidades?
Como esquecer os múltiplos processos que nos juntavam
no banco dos réus, aos ladrões, às prostitutas, aos
mendigos? Como esquecer as celas das prisões ou dos quartos
de segurança onde passávamos dias de sofrimento, mas também
de alegria cristã? Como esquecer as inumeráveis detenções cheias
de circunstâncias emocionantes e de episódios dramáticos?
Não, estas coisas estão vivas na memória de todos os que
as viveram; mas não representam, porém, uma recordação opressiva
ou assustadora, antes uma doce recordação com leves tons nostálgicos
que fala de lutas, mas também de vitórias; de dores mas também
de bênçãos, sobretudo que fala de uma vida cristã intensamente
vivida; vivida até ao sacrifício, até à renúncia, até à dor,
com todo o ímpeto de corações realmente transbordantes do amor
de Cristo. Muitos cristãos invocam hoje os dias da perseguição,
porque recordam claramente que o fogo da luta era também o fogo da
santificação, o fogo da fidelidade. É audaz afirmar que a perseguição
representa saúde espiritual, mas é também audaz sustentar que ela
constitua um dano para a igreja cristã e é mais lógico aceitar
o princípio de que tudo aquilo que Deus prepara na vida do seu povo
é para o bem e para a prosperidade.
Por isso hoje, que um
clima de parcial tolerância (*)
afastou a luta quotidiana da
perseguição, nós não invocamos uma nova perseguição,
como não sofremos agonias por uma
absoluta
liberdade, mas invocamos e
esperamos o cumprimento do plano que Deus, o Deus
de toda a sabedoria, preparou para nós. |
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Capítulo
1 - O nosso Deus, a quem nós servimos é poderoso
para nos libertar. |
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... O
nosso Deus, a quem nós servimos é poderoso para nos
libertar...
(Daniel 3:17). |
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A frase
dos três irmãos hebreus foi, durante o
período da perseguição, o mote e também a regra
espiritual das comunidades de Itália. |
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Todas
as igrejas e todos os fiéis fizeram o seu caminho
com a convicção profunda que Deus era poderoso
a manifestar ajuda e libertação em todas as provas. Portanto
as provas, as dores, as perseguições não representavam,
para os cristãos, um sinal da fraqueza ou impotência
de Deus, mas somente uma manifestação dos seus planos
e da sua vontade. |
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Sempre, de
facto, perante os ferozes agressores os cristãos
repetiram o testemunho de Sadraque e dos seus companheiros:
"O Deus que servimos é poderoso a nos libertar". |
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Quantas
vezes vimos diante de nós funcionários espumando
de raiva, quase loucos de ira, que, parecia, quererem
triturar-nos, aniquilar-nos! Quantas vezes ouvimos
gritar na cara as suas terríveis ameaças; quantas vezes
se apresentou aos nossos olhos o espectáculo de um poder humano,
de um poder infernal que parecia esmagar-nos!...
Amedrontámo-nos ou reconhecemos a grandeza deste diabólico
poder? Não! Continuámos a repetir, perante os perseguidores,
mas sobretudo no íntimo do nosso coração: "Deus é poderoso
para nos libertar!" |
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Esta convicção
e este testemunho não foram, porém, nunca independentes
da convicção expressa na segunda frase dos três companheiros
hebreus: "Se Deus não nos libertar, nós faremos igualmente
a Sua vontade" |
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Ele é
poderoso para nos libertar, mas se, para o cumprimento
dos seus planos gloriosos e eternos, considerar
mais oportuno deixar-nos no fogo da perseguição, nós
continuaremos igualmente a honrar e glorificar o Seu nome
com fé e dedicação. |
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Nestes
termos o nosso testemunho resultava completo e a nossa
convicção sã e perfeita. Nos liberte ou não nos liberte,
avante; avante com o Senhor. E todos juntos repetindo
estas doces e poderosas palavras, prosseguimos o nosso
caminho. |
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O Deus
fiel muitas e muitas vezes nos mostrou e demonstrou
que era poderoso a fazer libertações
milagrosas em nosso favor e estas repetidas demonstrações
foram suficientes naqueles dias para nos recordar que
quando Ele não nos libertava tinha que cumprir, no nosso
sofrimento, um plano para a sua glória e para a nossa edificação. |
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Pessoalmente
tive modo de experimentar repetidamente a intervenção
milagrosa de Deus e de constatar por isso que tudo
se desenvolvia segundo os planos inteligentes que o
Senhor devia levar a execução. Dentre as muitas libertações
lembro-me de
uma realizada longe da minha cidade. Fui convidado para
ir a Terni, onde tinha surgido uma pequena comunidade cheia
de fervor e de entusiasmo cristão. Aceitei o convite e dirigi-me
para essa cidade juntamente com uma irmã da comunidade. Assim
que chegámos, dirigimo-nos para casa de uma família de fiéis que
estava à espera da nossa chegada e ali iniciámos uma conversa
cristã. Estávamos lá somente há pouco tempo, talvez 30 minutos,
quando chegou um jovem irmão todo atarefado a avisar-nos que
um notável número de agentes de segurança pública tinham invadido
diversas habitações de fiéis e em todo o lado perguntavam por
mim. Procuravam-me activamente para me prenderem. Por quem tinham
sido informados da minha chegada nunca pude sabê-lo, mas uma coisa
soube naquela ocasião: eu era procurado. |
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Sem demora
deixei aquela casa e pus-me a andar pela cidade juntamente
com a irmã que me tinha acompanhado. Peregrinámos longamente
esperando confiantemente os eventos, mas a trepidação
nos inflamava o coração; estávamos ansiosos
pelos
fiéis junto dos quais a polícia me procurava. |
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Caminhando
em todas as direcções, procurei restringir o círculo
dos meus passos para a casa da família que representava
o centro da comunidade do lugar. Cheguei nas proximidades
daquela casa e procurei observar de longe o que estava
a acontecer. Não consegui notar nada e por isso decidi-me,
avançando cautelosamente, aproximar-me da casa. A zona
estava quase deserta e eu com aparente desinteresse e indiferença
caminhei para o portão. |
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Cheguei
diante da entrada: nada! Tudo silêncio. Não sabia
se entrar ou afastar-me; de repente tomei a decisão
de encostar-me à janela que estava ao lado do portão,
à distância talvez de um metro para procurar observar,
através dos postigos fechados o que acontecia no interior.
Com a máxima cautela me aproximei e procurei olhar para
o interior. Os
postigos
estavam muito fechados e o meu olhar
não conseguia penetrar através das fissuras, estava
intensamente concentrado no meu intento, quando de repente
me achei rodeado por um denso grupo de guardas. Eram vinte?
Eram trinta? Não poderei dizê-lo mas lembro-me claramente que
eram muitíssimos. Tinham chegado por trás de mim sem que
me apercebesse disso; porque estava profundamente concentrado
a tentar superar o obstáculo dos postigos para poder ver
o que se passava no interior da casa. Voltei-me: os guardas estavam
à minha volta; estávamos absolutamente sozinhos naquela zona.
Não me desencorajei, antes decidi caminhar; atravessei o círculo
dos guardas; afastei-me, perdi-me novamente na cidade longe deles
e da sua raiva. |
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O que
aconteceu? Não sei; mas eu creio que os guardas olharam
para mim sem me ver; rodearam-me sem se aperceberem
que eu me afastava tranquilo atravessando as suas fileiras.
Sim, o nosso Deus é poderoso a nos libertar; a nos libertar
individualmente, como fez muitas e muitas vezes comigo
e com todos os fiéis durante a perseguição; e também a nos
libertar colectivamente, quando com estes meios pretendia
glorificar o Seu nome. Quantas vezes a polícia acreditava
ter-nos na mão enquanto nós lhe saíamos da dita de maneira
milagrosa! Quantas vezes era obrigada a consumir-se de
raiva por causa dos métodos maravilhosos que Deus usava para esconder-nos
dos olhos de quantos nos combatiam! |
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Lembro-me,
dentre as muitas memórias, de uma libertação tão poderosa
quanto graciosa. Realizava-se uma reunião de culto
em noite avançada no fundo de um campo situado na extrema
periferia da cidade. Os fiéis conheciam o lugar, porque
tinha sido usado muitas vezes para o mesmo objectivo e se
encontraram ali pela hora estabelecida. |
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A escuridão
de uma noite sem lua rodeava os fiéis de uma densa
cortina. Iniciaram os hinos
em voz baixa
... |
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De repente,
coisa estranha, duas, três, cinco, oito pequenas
luzes se acenderam no meio do grupo. Eram fogos de cigarros.
Os fiéis compreenderam que diversos inconvertidos
se encontravam naquele mesmo lugar, mas não se preocuparam;
a reunião continuou regularmente. Após os hinos, a oração;
após a oração, mais um hino; depois os testemunhos, a
pregação, um hino, uma segunda oração, e por fim a reunião
se encerra. |
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Todos
tomaram o caminho de volta e espalhadamente alcançaram
novamente a cidade para encaminhar-se para as suas
habitações. |
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Uma semana
depois viemos a saber, de maneira verdadeiramente
milagrosa, que um grupo de guardas, enviados expressamente
para prender os fiéis, tinham estado presentes na reunião
sem poder executar a ordem recebida. |
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Eles tinham
vagado longamente pelos campos e finalmente, guiados
também pela voz, que, embora leve era levada pelo
silêncio da noite, tinham chegado ao meio do grupo.
Antes de proceder à operação de polícia tinham
querido escutar: os cânticos os comoveram, os testemunhos e
as orações suscitaram um sentimento de reverência nos seus corações,
depois chegou a pregação que os compungiu. Deus os venceu
e eles estavam no fim da reunião decididos a
voltar para os superiores apenas para anunciar que a operação
tinha sido infrutuosa. |
|
Sim, o
nosso Deus é poderoso a nos libertar!
|
|
A certeza
neste poder era o nosso conforto quando a libertação
tardava ou não vinha. Dizíamos todos no íntimo do
nosso coração: “Deus poderia libertar-nos; se não nos liberta,
é somente porque tem um plano glorioso a cumprir, ou porque
quer provar a nossa fidelidade para com o Seu nome”. Este pensamento
íntimo mas sólido dava-nos força para repetir perante os agressores:
“Ainda que o Senhor não nos liberte, nós continuaremos
a fazer firmemente a Sua vontade”. |
|
E Deus
verdadeiramente permitiu, naquela época, provas que,
consideradas hoje, parecem bem duras. Digo: “consideradas
hoje” porque ontem, enquanto as atravessávamos,
nos pareciam coisas normais e quase de pouca importância:
a virtude da graça de Deus nos fortificava para sustentar
e superar todas as coisas com facilidade. |
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Mas hoje,
olhando para trás, podemos ver a profundidade da
prova e podemos dar louvor a Deus que nos ajudou para
enfrentá-la vitoriosamente no Seu nome. |
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Famílias
inteiras viveram desmembradas por anos e anos; dezenas
e centenas de irmãos se consumiram no exílio ou nas
prisões. Posições sociais arruinadas, saúde destruída,
afectos espezinhados: estas foram as consequências
da perseguição, quando Deus, para glorificar o Seu nome
e para cumprir os Seus planos maravilhosos, não quis manifestar
uma libertação da prova. |
|
Hoje podemos
reconhecer que tudo foi para o nosso bem e que Deus
sempre agiu com infinita sabedoria; ontem nos bastava
saber que Ele era poderoso a nos libertar para ter coragem
de servi-Lo ainda que Ele não nos libertasse. |
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Por vezes
a prova era prolongada, levada até ao martírio,
mas também nessa os filhos de Deus sabiam repetir:
“Se não nos libertar, O serviremos igualmente”. |
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Lembro-me
de um caro irmão da nossa comunidade de nome I.. Ele
aceitou o Senhor no período da perseguição. Todos
os que faziam uma decisão por Cristo, naquela época,
estavam prontos e decididos a enfrentar as lutas e os
combates. Também este irmão, cheio de zelo e de entusiasmo
cristão, estava pronto a sofrer pelo Mestre. |
|
Verdadeiramente
o sofrimento não se fez esperar foi preso e logo
repatriado juntamente com sua família. Ele tinha, na
nossa cidade, uma discreta posição laboral, mas lhe
foram tirados emprego, casa, residência e foi enviado para a
sua terra natal onde estava desprovido de todas as coisas; portanto
foi reduzido à miséria. |
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Este irmão
não se desencorajou, antes logo começou a evangelizar
Cristo aos seus conterrâneos. Ele aceitou essa
prova como cumprimento do plano divino que queria a salvação
das almas da sua terra. Em pouco tempo o Senhor recolheu
no Seu aprisco um discreto número de ovelhas errantes: uma
pequena comunidade surgiu naquela perdida localidade montanhosa. |
|
Esta obra
suscitou a reacção violenta das autoridades políticas
do lugar. Estas tramaram uma conjura infernal contra
o fiel servo de Deus e o mandaram prender. Foi feito comparecer,
sob acusações malignas, diante do terrível tribunal fascista
para a defesa do regime e ali, sem se poder defender, foi
condenado a cinco anos de prisão. Uma amnistia reduziu a prisão
para três anos e portanto por três anos o fiel irmão foi
recluso numa horrorosa e insalubre prisão das Marcas, onde,
entre outras coisas
, foi submetido às vexações do capelão da cadeia, que em
Itália representa uma terrível autoridade no seio das prisões. |
|
Na prisão
ele contraiu uma grave doença que naquele ambiente
favorável teve possibilidade de desenvolver-se progressivamente. |
|
Chegou
o dia da libertação; este irmão regressou à sua família,
à sua terra e, naturalmente, regressou também para
aqueles que tinham aceitado Cristo pelo seu testemunho.
Ele retomou, em suma, a sua actividade cristã repetindo com
Paulo: « ... Eu não faço conta de nada e a minha própria
vida não me é cara ». |
|
Mas a
sua actividade foi interrompida violentamente mais
uma vez: preso e exilado, se encontrou novamente longe
dos seus, do seu trabalho. Foi enviado para um campo
de concentração e submetido a trabalho forçado. Por
outros três anos o seu físico continuou a degradar-se na doença
e nas provações. |
|
Quando
regressou à sua terra, era já a sombra de si mesmo;
mas se a sua carne estava consumida, o seu espírito
estava ainda mais ardente para o serviço do Mestre. |
|
Levou
de novo o entusiasmo do seu exemplo à pequena comunidade,
inflamando os irmãos com a bênção do seu ministério. |
|
Foi preso
de novo e literalmente deixado a apodrecer numa prisão;
sem processo, sem acusações o deixaram enfraquecer numa
cela horrível... Dias e dias passaram sobre ele, enquanto
a doença o consumia e o fazia sofrer. Um dia os algozes
se aperceberam que naquele pobre corpo a vida estava a apagar-se:
o libertaram. Não foi um acto de amor ou de piedade mas somente
calculismo. Preferiram não assumir a responsabilidade da
sua morte. |
|
Os familiares
foram buscá-lo; foi levado para casa, deitado num
leito. Não havia mais vigor naquele corpo destruído, mas
o espírito era poder para a glória de Deus e, de facto, poucos
dias depois, continuando a louvar constantemente o Senhor,
este caro irmão partiu desta terra para ir ter com Aquele
que tinha amado mais do que a sua vida. |
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Ainda
que não nos liberte...
|
|
Numa pequena
localidade a pouca distância da nossa cidade tinha
surgido uma pequena comunidade muito zelosa mas muito
perseguida. Íamos frequentemente visitá-la e todas
as vezes era necessário visitar os fiéis detidos pela polícia
ou maltratados ferozmente pela população. Um dia as autoridades
locais, no seguimento de ordens superiores, detiveram
um irmão da pequena comunidade juntamente com a sua filha
e os levaram, ambos, para as prisões da nossa cidade. Este
irmão não era muito jovem e sofria do coração, a sua filha era
uma jovem moça de cerca de vinte anos. |
|
Foram
retidos longamente em prisão e ali, privado do ar necessário
e dos necessários cuidados, este irmão teve um agravamento
do seu mal. Nenhuma misericórdia foi usada para
com ele, antes, condenado ao exílio, foi enviado para
um terra longínqua
e inacessível, enquanto a filha, condenada à mesma pena,
foi enviada para outra localidade separada. A polícia quis privar
um doente da assistência da filha e uma moça da protecção do
pai. |
|
Eles não
se desencorajaram e, embora a lonjura recíproca, a
lonjura da família, a doença representassem uma dura
prova, continuaram a realizar no seu coração que Deus
era poderoso a libertá-los e que, portanto, se não os libertava
queria glorificar de modo diferente o Seu nome. |
A jovenzinha
irmã se achou sozinha, num mundo hostil, longe dos
seus, separada do seu pai. As bênçãos de Deus representavam
o conforto da sua vida e a presença de Jesus a sua doce
companhia; enquanto a oração era o único meio que lhe
permitia sentir-se também perto dos seus, apresentando-os
ao trono da graça divina. |
|
Uma noite,
como de costume, sozinha no seu quarto, se deitou:
sonhou um doce mas duro sonho. |
|
Via-se
junto a seu pai e unidos percorriam um longo caminho;
a companhia desejada era doce e agradável, mas,
subitamente, seu pai a deixa e
toma uma nova estrada e eis que ela se apercebe que
o terreno por debaixo dos seus pés é dificultoso, enquanto
aquele sobre o qual caminha seu pai é plano. A sua estrada
aparece cheia de pedras e flanqueada de espinhos, aquela do
seu querido pai, pelo contrário, nivelada e flanqueada
de flores. |
|
Seu pai
afasta-se cada
vez mais rapidamente dela e por aquele agradável caminho
sobe, sobe, sobe cada vez mais alto. |
|
Ela chama-o
e quase suplica para voltar atrás para unir-se a
ela que não quer ficar sozinha, mas seu pai continua
a subir e a afastar-se... |
|
A cara
irmã acorda perplexa. Não sabe se aceitar aquele sonho
como uma mensagem divina; mas bem rápido todas as dúvidas
são superadas pela realidade; e ela recebe a fúnebre
notícia que seu pai deixou este mundo cheio de espinhos
e dificuldades para subir a estrada da glória para o céu. |
|
Longe
da filha, longe da família, o caro irmão continuou
o combate da fé repetindo até ao fim: “Ele é poderoso a libertar-me,
mas ainda que não me liberte, eu glorificarei o Seu nome”. |
|
Hoje que
os anos afastaram estes episódios transbordantes de
heroísmo espiritual, nós podemos reconhecer melhor
a ajuda omnipotente de Deus, que não se manifestou
sempre mediante a libertação, mas que foi em todas as
circunstâncias eficaz para confortar os combatentes no
desafio e na prova. |
|
|
Capítulo
2 - Ora nós sabemos que todas as coisas cooperam
para o bem
|
|
Todas
as coisas cooperam para o bem... |
|
Nós cristãos
aceitamos incondicionalmente o princípio que a Bíblia,
isto é, a Palavra de Deus, é verdade. |
|
Esta confiança
é exteriorizada nos nossos testemunhos, é codificada
pelos nossos artigos de fé, é sustentada nas nossas
polémicas. Sim, nós cremos que a Bíblia é verdade. |
|
Quando,
porém, as Escrituras afirmam as particulares verdades
proclamadas por Deus, nós, precisamente nós cristãos,
começamos a vacilar. Isto é, estamos dispostos e prontos
a aceitar e crer em determinadas verdades mas não estamos
igualmente prontos a crer em outras verdades. Estamos abertos
para crer naquelas verdades, teóricas ou práticas, que estão ligadas
à consolação, ao gozo, à bênção, mas não estamos dispostos
a aceitar aquelas verdades que nos falam de dor, de sofrimento,
de prova. |
|
A afirmação
do apóstolo Paulo na epístola aos Romanos faz parte
desta última espécie. |
|
Todas
as coisas cooperam para o bem... |
|
É fácil
crer nesta declaração quando o nosso sentimento está
aspergido de pétalas perfumadas, mas, infelizmente, não
é igualmente fácil crer quando diante de nós se
apresentam circunstâncias ameaçadoras: perseguições,
dores. |
|
A verdade
porém permanece sempre verdade, independentemente
da atitude que nós assumamos perante ela, e nós podemos
gozar o benefício inefável dela na medida em que a
aceitarmos humildemente na nossa vida. |
|
Muitos,
hoje, não crêem na Bíblia e a combatem obstinadamente,
mas nem por isso a Bíblia cessa de ser verdade; o
único resultado dos inimigos dela é o de perder as bênçãos
que a Bíblia oferece a todos os homens. |
|
Ouvimos
repetir frequentemente: “Eu não acredito no inferno...”,
ou “Eu não acredito no Paraíso”. Mas estas palavras
não destroem o inferno e o Paraíso e servem somente
para fazer perder o temor do inferno e a esperança do
céu àqueles que as pronunciam cinicamente. |
|
Os irmãos
perseguidos de Itália conseguiram abundantes bênçãos,
porque souberam crer que todas as coisas cooperam para
o bem daqueles que amam a Deus. |
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Se nós
olharmos para a prova, para a dor, para a perseguição,
como se estas coisas fossem inimigos impiedosos da nossa
vida, nós não podemos conquistar o bem que está conexo a estas
coisas; mas se nós soubermos enfrentar estas circunstâncias,
como necessidades benéficas, preparadas ou permitidas
por Deus, nós colheremos certamente os pacíficos frutos
de justiça gerados pela dor. |
|
A fé dos
cristãos não foi uma fé vacilante, porque a persuasão
de ir ao encontro das bênçãos fez todas as provas róseas
e todos os desafios ligeiros. |
|
Nem sempre
durante o período da perseguição pudemos entender
o significado das provas; muitas vezes não nos foi possível
reconhecer o bem contido nas dores sofridas, mas
nem por isso, fé e persuasão cederam, porque sabíamos que
o bem prometido por Deus pode aparecer muito tempo depois
ou pode permanecer encoberto aos nossos olhos. Talvez nós
não consigamos ver o resultado benéfico das circunstâncias
dolorosas da nossa vida cristã e o Senhor repita para nós
como para Pedro: “O que Eu faço não o sabes tu agora, mas o
saberás depois”. |
|
Não conseguimos
ver, repito, o resultado querido por Deus, mas
nem por isso ele não se manifesta, e nós, quando um dia
comparecermos diante de Deus, poderemos conhecer o porquê
e o significado de todas as coisas e então, perante
os séculos, elevaremos o nosso salmo de louvor, repetindo
lá em cima que verdadeiramente todas as coisas cooperam
para o nosso bem, em harmonia com os planos divinos. |
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Disse
que nem sempre, durante a perseguição, pudemos reconhecer
logo ou claramente a bênção consequente às provas mas
é necessário acrescentar que muitas e muitas vezes o
plano precioso e benéfico do Senhor apareceu tão claramente
e tão solicitamente que infundia nos nossos corações o mais
vivo dos encorajamentos. |
|
Vimos
que muitas provas não tinham outro objectivo senão
o de fazer-nos levar o testemunho e a pregação do Evangelho
em lugares ou a pessoas que não podiam ser alcançadas
diferentemente. Muitos e muitos lugares de degredo,
para onde foram exilados os fiéis, foram alcançados
pela pregação da verdade e hoje há diversas comunidades nascidas
por esses testemunhos que falam do plano benéfico de Deus. |
|
Autoridades,
magistrados, agentes da segurança pública foram
evangelizados exclusivamente porque as detenções, a reclusão,
os processos nos puseram em condição de falar livremente
e francamente do Salvador. |
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E a Palavra,
nas prisões, não foi levada unicamente pelo caminho
da perseguição? |
|
Em Itália
não é permitido evangelizar os reclusos porque somente
os sacerdotes católicos têm acesso às celas das prisões,
mas Deus abriu aquelas portas de ferro diante de
nós. É verdade que elas depois se fechavam nas nossas
costas, mas isso era somente para dar-nos uma mais ampla oportunidade
de falar de Cristo aos infelizes pecadores que se encontravam
encarcerados nesses lugares. |
|
E nas
prisões, lugares de tormento e de pecado, a Palavra
de Deus teve o seu caminho: pecadores foram salvos
e Deus baptizou também no Espírito Santo ali, onde ninguém
pode chegar. |
|
Lembro-me
do testemunho simpático e significativo de um caro
irmão da nossa comunidade. Este irmão foi preso múltiplas
vezes e passou grande parte do período da perseguição
entre a prisão e o exílio. Sempre cheio de fervor e de
zelo, amava pedir a Deus: “Senhor se nesta comunidade tiver
que haver mártires, concede-me a honra de ser o primeiro”. Deus
não o atendeu nesta petição, mas hoje ele está igualmente com
o Senhor. Os planos eternos não se conciliam sempre com os
nossos desejos e os nossos pedidos. |
|
Este irmão,
durante uma das suas diversas detenções, foi posto
na cela de um criminoso à espera de processo; era este
um homem colérico e violento acusado de rixa à mão armada. |
|
O caro
irmão S. não demorou a falar do Salvador ao pobre encarcerado,
mas este rejeitou duramente o testemunho. Tentou
outras vezes, mas o resultado foi idêntico antes parecia
que a Palavra de Deus provocasse a ira e a cólera do temível
pecador. |
|
O pobre
irmão tornou-se bem rápido o objecto dos insultos
e da furiosa cólera do seu companheiro de cela, mas
ele nunca mudou o seu comportamento de amor, de doçura
e de mansidão. |
|
Um dia
que S. orava ajoelhado junto da sua cama, o criminoso,
fora de si, se lançou sobre ele, brandindo uma cadeira
de madeira. Estava decidido a parti-la na sua cabeça para
acabar com aquele homem que representava uma acusação
à sua vida de pecado. Ele estava para fazer o gesto criminoso
quando uma mão omnipotente, a de Deus, lhe segurou energicamente
o braço: a cadeira caiu por terra. |
|
A luta
continuou ainda alguns dias, mas cada vez mais leve:
o pobre pecador começava a ouvir a voz das obras do caro
servo de Deus... |
|
Um dia
veio a capitulação; o criminoso se aproximou do irmão
com doçura e confessou-lhe: “Reconheço que tu és verdadeiramente
um filho de Deus! Reconheço que aquilo que tu praticas
e pregas é a verdade. Queria aceitá-la, mas não posso! |
|
“Por que
não podes?” perguntou prontamente o irmão. |
|
Porque
eu não poderia suportar os escárnios e as perseguições
que tu suportas” respondeu o pobrezinho, e depois
prosseguiu: “Eu vejo que tu és o objecto dos insultos
de todos e particularmente dos carcereiros; quando
eles entram na cela e te encontram ajoelhado, cobrem-te de
palavras malvadas. Eu não poderia suportar todas essas ofensas;
no entanto creio que Jesus é o meu Salvador e queria aceitá-Lo;
sim, queria aceitá-Lo com todo o coração, mas não posso, não
posso...” |
|
O pobre
pecador arrependido estava repetindo com tom consternado:
“Não posso, não posso...”, quando o poder de Deus
caiu sobre ele numa gloriosa e dulcíssima visitação.
Ele caiu sobre os seus joelhos e começou a gritar com toda
a força dos seus robustos pulmões: “Senhor, tem piedade
de mim; tem piedade de mim; tem piedade de mim: salva-me!” |
|
A esses
gritos fortes e prolongados acorreram os guardas,
os serventes, os carcereiros e entraram na cela. |
|
Compreenderam
logo o que tinha acontecido e começaram a insultar
o pecador penitente, mas ele já não se importava mais
com eles e com as suas ofensas; tinha encontrado o
Senhor. |
|
A seguir
Deus manifestou maravilhosamente a Sua ajuda para
com ele e em pouco tempo readquiriu a liberdade. Cheio
de gozo na salvação encontrada, regressou à sua terra
e começou logo a dar testemunho do Redentor. |
|
Todos
ficaram maravilhados da sua milagrosa transformação
e particularmente os seus familiares ficaram impressionados
pela evidência da obra de Deus e o Espírito Santo encontrou
um caminho aberto para operar. Hoje, nessa terra, existe
uma pequena comunidade pelo sofrimento de um filho de Deus
e pela sua fidelidade. |
|
Sim, todas
as coisas cooperam para o bem. |
|
Quando
medito o versículo de Paulo aos Romanos e a afirmação
categórica que está contida nele, não posso deixar
de associá-la, no pensamento, ao período da perseguição.
Deus é verdadeiramente maravilhoso e sabe conceber planos
que nos enchem de surpresa. |
|
Lembro-me de um período particularmente duro na luta
da perseguição e lembro-me de como, através dessa
prova que parecia danosa para a igreja, o Senhor
trouxe à luz bem e prosperidade para ontem e para hoje. As
autoridades tomaram a decisão de privar o povo de Deus dos
seus condutores; elas tinham conseguido identificar aqueles
que, no meio dos fiéis, cumpriam um ministério e exerciam
uma função directiva e por isso determinaram prendê-los, repatriá-los,
exilá-los, com o objectivo de gerar a desorientação e portanto
a paralisação da obra. |
|
A prova
foi verdadeiramente dolorosa, porque vimos, um após
outro, eliminados todos aqueles que administravam a
Palavra e que guiavam
o povo, mas desta prova brotou,
de maneira gloriosa, a bênção divina, porque enquanto
os ministros da obra eram eliminados, já outros
surgiam para tomar prontamente o lugar deles. Os actos de
consagração se cumpriam um após outro e Deus selava esta disposição
enchendo os corações de poder e de suficiência para o
ministério. |
|
Foi através
desta circunstância que também eu, há cerca de vinte
anos, embora jovem de idade e ainda jovem na fé,
fiz o meu acto de consagração ao serviço de Deus. Senti-me
chamado a tomar o lugar de outros que tinham sido presos
e afastados e Deus me aprovou para ajudar-me nesta árdua
tarefa. |
|
A seguir também eu
fui eliminado temporariamente do serviço e outros
tomaram o meu lugar e assim Deus, mediante a perseguição
dirigida particularmente aos obreiros do seu campo,
soube chamar, suscitar e incitar um notável número de servos
para o seu serviço. |
|
Quero
contar como foi chamado e preparado para a obra um
destes obreiros nascidos pelo fogo da luta. |
|
Este irmão
foi evangelizado no período da perseguição. Ele tinha
procurado ansiosamente a verdade por muito tempo e por
isso aceitou o testemunho com
entusiasmo
sincero. |
|
Ninguém
lhe falou de reuniões, mas ele próprio fez questão
de poder encontrar os fiéis, de poder louvar o Senhor. |
|
Mas o
irmão que o tinha evangelizado estava perplexo e titubeante
e por fim sinceramente lhe declarou: “Nós somos perseguidos,
as nossas reuniões são portanto perigosas, pois podemos
ser sempre presos e encarcerados...” |
|
Este irmão
não sabia se as suas palavras seriam recebidas com
agrado; mas com agradável admiração ouviu responder entusiasticamente:
“Perseguidos, presos? Mas esta para mim é mais uma
prova que estais na verdade: a igreja cristã sempre
foi perseguida e eu não tenho temor de ser perseguido,
juntamente com os cristãos, para a glória de Deus”. |
|
Quis ir
ao culto; fomos surpreendidos e presos e ele foi
preso juntamente connosco. Após diversas semanas de
prisão foi repatriado para a sua terra natal. Achou-se
desde os seus primeiros passos da vereda cristã sozinho, longe
da irmandade, apertado pela necessidade e no meio da luta
da incompreensão e da perseguição, mas não se desencorajou.
As experiências que tinha feito tinham suficientemente
e profundamente confirmado o seu coração no caminho da verdade
e portanto ali, na solidão e na prova começou a orar fervorosamente
para ser revestido de poder divino. O Deus fiel não tardou a
atender aquela oração sincera e o jovem irmão foi baptizado no Espírito
Santo e separado para o ministério do Evangelho. Com toda a franqueza,
no meio das incomodidades, da miséria e das provas, ele começou
o seu trabalho evangelístico e ainda hoje, que passaram já dezoito
anos, ele o continua com verdadeira capacidade espiritual. |
|
Deus portanto
soube multiplicar os obreiros, conseguiu fazer
surgir as comunidades, conduziu o testemunho às prisões
e diante das autoridades mediante as provas e as perseguições.
Tudo isto nos confirma que "todas as coisas cooperam
para o bem". |
|
Não importa,
repito, se este bem aparece ou permanece encoberto;
ele existe e nesta confiança a nossa vida se deve render,
na calma ou na perseguição, nos braços de Deus. Os irmãos
perseguidos de Itália souberam compreender esta verdade
preciosa nos dias da luta e Deus os pôde usar para cumprir
os seus planos. Quando esta verdade é norma na nossa vida,
força no nosso coração, tornamo-nos sempre os instrumentos
dóceis dos planos divinos. |
|
Sim, todas
as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a
Deus e os nossos próprios perseguidores tiveram que
ver e reconhecer que o seu poder e as suas providências
não danificaram, antes ajudaram a igreja do Senhor
no seu desenvolvimento e na sua prosperidade. |
|
|
Capítulo
3 - Salas de reuniões |
|
A esta altura do meu modestíssimo trabalho desejo
apresentar alguns esboços que ilustram, indirectamente,
a vida emocionante vivida pelos fiéis no período
da perseguição. |
|
Estes
esboços nada têm de dramático nem são apresentados numa
forma linguística que faça deles material de leitura
amena. Eles são simplesmente o testemunho de algumas
cenas de vida vivida e têm o objectivo de fornecer uma
ideia precisa da moldura que enquadrava a actividade da
igreja no período ao qual se refere este livreto. |
|
Para seguir,
direi, uma ordem lógica, apresento como primeiro,
dentre estes esboços, aquele sobre as nossas “Salas de
reuniões”. |
|
Os cristãos
que sempre se reuniram em salas amplas e confortáveis,
que sempre tiveram ventiladores ou sistemas de aquecimento,
porventura nunca imaginaram de que salas se tiveram
que servir os irmãos de Itália no período da luta
e da vida clandestina. |
|
É necessário
que diga, antes de qualquer outra coisa, que estas
" salas " (desculpai-me se continuo a usar impropriamente
este nome) deviam, o mais possível, esconder-nos dos olhos
indiscretos dos nossos inimigos e do controlo das autoridades. |
|
Não podíamos
fazer escolhas demasiado cuidadas e as comodidades
tinham de ser esquecidas, porque o primeiro requisito era
o secretismo. |
|
Portanto,
as primeiras salas foram constituídas pelas habitações
dos fiéis que moravam nos quarteirões mais isolados
da cidade. Geralmente eram pequenos quartos pobres e
sem ar, onde porém se amontoavam igualmente dezenas e dezenas
de fiéis. |
|
Respirava-se
em esforço e não havia possibilidade de alguém se
mover. Apertados uns ao lado dos outros, era necessário
somente ter cuidado para ocupar o menor espaço possível,
no entanto nestas pequenas salinhas, onde escorria pelas
paredes a humidade do nosso hálito, estava sempre gloriosamente
presente a bênção de Deus. |
|
Saíamos
desses lugares com os nossos casacos atravessados
pelo suor, com as calças coladas às pernas, com as testas
húmidas de suor e os rostos corados, mas com a alegria
de nos termos reunido e de termos juntos encontrado
o Senhor. |
|
Dentre
todos estes quartos lembro-me particularmente de um deles. Era
uma pobre divisão de uma casa pequena e modesta
na periferia; tinha de largura talvez três metros e
não era mais comprido do que três metros e meio. O tecto
descia perpendicularmente e a parte mais baixa podia
ser quase roçada com a cabeça. O chão era de cimento. |
|
Neste
quartinho foram realizadas centenas de reuniões, interrompidas
de quando em vez por uma prisão em massa operada pela
segurança pública. Muitos encontraram o Senhor entre
essas paredes e muitíssimos foram baptizados com o Espírito
Santo. |
|
Lembro-me
de uma das operações da polícia efectuada enquanto
nos encontrávamos reunidos no quartinho descrito.
|
|
Era um
domingo e estávamos reunidos para uma reunião de oração.
Os fiéis tinham chegado cada vez mais numerosos e todos
os cantos, e todos os espaços tinham sido ocupados.
As paredes escorriam literalmente água; o ar era pesado,
mas tudo isto desaparecia debaixo da nuvem da glória de Deus que
estava presente naquele lugar de um modo maravilhoso... |
|
Nesta
altura cedo a descrição a um irmão que se encontrava
no exterior da
modesta casa
. Ele não tinha podido entrar e se tinha sentado sobre
um ponto elevado distante uma centena de metros: |
|
“Chegou
a polícia”, contou este irmão, “e rodeou a casa de
longe; parecia que tinham que fazer uma operação perigosa:
os agentes estenderam-se no chão à espera de um sinal. De
repente o comandante deu o sinal e todos, como um só homem,
se levantaram e começaram a correr para a casa apertando o cerco
em torno dela. Quando se aperceberam que não havia perigo
ou resistência, abriram violentamente a porta e entraram... mas
dado um passo para dentro, deram prontamente dois para trás: o
ar era absolutamente irrespirável. |
|
Então,
com voz impetuosa e irada, nos ordenaram que nos levantássemos
e saíssemos dali. Fomos obrigados a obedecer e a sair.
Dez, vinte, trinta... O número aumentava cada vez
mais sob os olhos admirados da polícia que não conseguia
compreender como daquele barraco pudessem sair tantos
indivíduos. Quarenta, cinquenta, sessenta, setenta... |
|
"Mas como
puderam" - gritaram – "entrar nesse lugar? Não
tendes medo de ficar asfixiados?" |
|
Mais de
setenta saímos daquela espécie de antro, fornecido
de uma pequeníssima janela que, aliás, estávamos
obrigados a ter fechada para fazer ouvir o menos possível
as nossas vozes. Mais de setenta, ou seja, sete ou oito
pessoas por cada metro quadrado de espaço”. |
|
Ó querido
quartinho, quantas bênçãos tivemos reunidos dentro
de ti! Quantas vezes temos pensado nas reuniões por
ti hospedadas e temos pensado nelas com nostalgia!
|
|
Muitas
das reuniões hospedadas entre as paredes amplas e confortáveis
das salas de hoje estão privadas da bênção que enriquecia
as reuniões de culto realizadas naquela salinha que nos
dava humidade, calor asfixiante, falta de ar. |
|
Infelizmente,
estas pequenas salas de reuniões não estiveram
sempre disponíveis, porque, com o aumentar das medidas
de controlo da segurança pública e com o suceder-se das
detenções, as casas disponíveis tornaram-se cada vez mais em menor
número e um dia fomos obrigados a procurar noutro lugar, fora
das casas, as nossas salas de reunião. |
|
Diversos
irmãos, fornecidos de bicicleta, puseram-se à procura
nas zonas extremamente periféricas da cidade, de campos
desertos, cavernas, grutas, bosques que de qualquer
modo nos pudessem acolher. |
|
Foram
identificados diversos lugares aparentemente aptos
para as nossas necessidades. Começámos assim o nosso
êxodo nocturno e dominical para estas novas salas
de reunião. |
|
Um campo
geralmente não consegue esconder como uma casa e, portanto,
para alcançar do melhor modo possível o nosso objectivo
tinham sido escolhidos campos ou localidades campestres
longíssimos da povoação, das estradas e, portanto, da
indiscrição dos passantes ocasionais. |
|
Este critério
de escolha nos obrigou, porém, a fazer todas as
noites quilómetros e quilómetros de estrada, por
vezes na escuridão mais profunda, e a superar terrenos
perigosos e acidentados. |
|
Lembro-me
a este propósito da declaração de um polícia, numa
noite que nos prenderam: “Todas as vezes que venho procurar-vos
para vos prender, tenho que rasgar um par de calças!
Como podeis encontrar estes lugares inacessíveis?”
|
|
Não posso
esconder que o incómodo e o cansaço eram notáveis.
Todas as noites era necessário enfrentar os mesmos
perigos e o mesmo cansaço
e após as reuniões, se se conseguia reentrar
nas nossas habitações, se tinha de constatar que tínhamos
ultrapassado notavelmente a meia-noite. |
|
No entanto
naqueles campos húmidos, sentados no chão e chicoteados
por vezes pelo vento e pelo frio, nós gozávamos a mesma
alegria dos cristãos das catacumbas. |
|
Por vezes
não era um campo mas uma caverna que nos acolhia
entre os seus espectrais braços de pedra. Eram geralmente
cavernas abandonadas que apresentavam o espectáculo
desolador de um trabalho deixado a meio. Ali, sobre
aqueles pedregulhos espalhados em ordem desordenada, entre
aquele pó que nos cobria, nós nos sentíamos na nossa sala
de reunião diante do Senhor. |
|
Lembro-me, entre muitas, das cavernas de Via Ardeatina,
com as suas grutas subterrâneas que usávamos para
as reuniões de oração. Era necessário percorrer, para
chegar lá, uma estrada que parecia nunca mais acabar, mas
quando estávamos ali, que alegria, que bênçãos nos enchiam
a alma e o coração. |
|
As lembro
de modo particular dentre todas, porque voltei diversas
vezes para visitá-las. Elas tornaram-se, ironia do destino,
monumento nacional, porque precisamente no coração
destas cavernas, foram trucidados pelas tropas alemãs
335 Italianos. |
|
Estes
pobres infelizes estão agora sepultados no mesmo lugar
onde foram mortos; no mesmo lugar onde nós louvámos
o Senhor. |
|
Entre
os mortos estava também um crente da nossa comunidade,
capturado juntamente com os outros reféns e trucidado com
eles por represália. Eu já me tenho perguntado muitas vezes se esse
caro irmão terá reconhecido, nesse lugar onde perdeu
a vida, o mesmo lugar onde glorificou o Senhor. |
|
Além das
cavernas, como já disse, nos servimos de
outras salas de reuniões,
e entre estas estiveram também grutas hospitaleiras.
No seio da terra, iluminados por algumas tochas e por alguma
pequena lanterna de bolso, fomos imitadores perfeitos
dos cristãos das catacumbas. Nos sentíamos verdadeiramente
em comunhão com eles, e esses lugares, nos quais não chegava
nenhuma luz exterior e onde o ar não circulava, tornavam-se
os mais sugestivos lugares de reuniões que se podiam imaginar. |
|
Também
as grutas estiveram disponíveis somente por um período
de tempo e fomos obrigados a procurar outras "salas",
outros lugares de reuniões. |
|
Localidades
inacessíveis, pequenos barrancos escondidos, bosques
abandonados, praias fluviais inalcançáveis: tudo
foi experimentado e tudo foi usado. |
|
Os perigos
e os sacrifícios eram postos fora das nossas considerações,
porque o único objectivo era o de estar reunidos
para juntos louvar o Senhor e oferecer o nosso culto
espiritual ao Seu nome glorioso. |
|
Não quero
fazer pensar que esta contínua mudança de lugares
de reuniões nos manteve longe da polícia. Não! Também
nestes vários lugares éramos alcançados sistematicamente
pelas autoridades executivas e detidos e encarcerados.
Neste último caso as celas das prisões tornavam-se as
nossas salas de reuniões e também nesses lugares de dor
e de sofrimento o nosso canto de louvor se elevava afectuoso
e sincero na presença de Deus. |
|
|
Capítulo
4 - As autoridades evangelizadas
|
|
No período
da perseguição o testemunho do Evangelho alargou-se de
modo maravilhoso e chegou
milagrosamente diante das autoridades
e diante dos magistrados. |
|
Quase
todos os graus da magistratura italiana foram evangelizados
pelos cristãos que se encontravam na dura prova,
porque os nossos processos foram levados ao pretório,
ao tribunal, à corte de cassação, diante do tribunal
para a defesa do Estado.... |
|
Os nossos
processos eram sempre interessantes e emocionantes;
geralmente levavam um tempo notavelmente longo,
porque abriam a porta ao testemunho do Evangelho. Durante
este tempo os magistrados recebiam o testemunho claro,
detalhado da salvação em Cristo. |
|
Nem todos
estes juízes receberam as nossas palavras benevolamente
e nem todos foram justos e imparciais em relação
a nós, mas mais do que um ou do que poucos ouviram e receberam
as nossas palavras com manifesto agrado e nos mostraram
o sentido da sua justiça. |
|
Eu lembro-me
de uns e outros e reconheço que Deus quis fazer
chegar a sua palavra a todos e não somente para falar de
salvação mas também de juízo e de justiça. Parece quase que
Deus tenha querido aplicar as palavras pronunciadas
pelo salmista: “Juízes da terra, sede sábios”. |
|
O testemunho
dos cristãos, além de falar de Cristo, falou a todos
os magistrados do tribunal de Deus, do Juiz supremo,
da justiça verdadeira. Isto é, lembrou a todos os homens,
chamados a administrar a justiça, que sobre os seus juízos
e sobre a sua autoridade estava e está a indestrutível
autoridade de Deus, perante o Qual todos os homens, e portanto
também os magistrados, devem comparecer para ser julgados. |
|
Dentre todos estes magistrados,
dois ficaram nitidamente presentes nas minhas
recordações. Vejo-os dentre muitos de um modo mais distinto,
direi mais próximo. O primeiro, uma simpática figura
juvenil, que conseguia conservar mesmo naquele período
de intriga e de corrupção um são sentimento de justiça.
Foi chamado diversas vezes a julgar as nossas causas e não
teve temor de manifestar toda a simpatia que nutria pela obra
de Deus. |
|
Numa causa
muito complexa, que envolvia na acusação cinquenta
e dois cristãos, nos ajudou a conseguir a vitória
na absolvição, iluminando-nos juridicamente para
fazer-nos reconhecer e superar as ciladas da acusação
pública. |
|
Talvez
a Palavra de Deus tenha alcançado o seu coração? Talvez
o testemunho do Evangelho tenha feito brecha na sua
consciência? Não sei! Após esse período de perseguição
o perdemos de vista e só a eternidade nos revelará todas as
coisas a respeito dele. |
|
Eu espero,
porém, que esse juiz benévolo possa encontrar benevolência
perante o Supremo Juiz. |
|
O segundo
foi juiz apenas num dos nossos processos. Eu não posso
dizer nada dos seus sentimentos ou das suas capacidades,
mas posso dizer que apareceu aos nossos olhos como o homem
vendido às oportunidades, isto é, um Pilatos em miniatura. |
|
Ele sabia
que muitas pessoas de alta posição desejavam a nossa
condenação e portanto preparou a sentença e, por conseguinte,
a condenação antes ainda da audiência. |
|
Este processo
foi particularmente emocionante. Uma grande sala
da Comuna foi posta à disposição para hospedar esta causa
que procuraram converter num espectáculo. |
|
Estavam
presentes, para assistir ao programa fora de série,
as pessoas mais influentes do lugar. |
|
A Potestade
dessa Comuna, isto é, o chefe da Comuna, se constituiu
acusador público e compareceu na audiência em "orbace",
isto é, em uniforme fascista com uma larga faixa tricolor atravessando
o peito. |
|
Tudo tinha
sido preparado para dar-nos em pasto à curiosidade
e eventualmente ao escárnio público. Mas Deus se glorificou
de um modo maravilhoso... |
|
As perguntas
do magistrado e as contínuas insinuações da acusação
foram somente ocasiões favoráveis para apresentar
e ilustrar amplamente e francamente a mensagem da salvação. |
|
O público
estava arrebatado pelas palavras que o Senhor punha
nas nossas bocas e todos manifestavam de um modo
evidente a sua aprovação: se tivessem podido, eu creio
que nos teriam calorosamente aplaudido. |
|
O testemunho
foi dado até ao fundo e o nome de Deus foi honrado;
mas o nosso juiz quis cumprir aquilo que tinha decidido:
fomos todos condenados. Deus, porém, operou maravilhosamente
e aquela condenação foi cancelada pela Sua mão. Eu espero
que esse pequeno juiz de óculos, servo do regime e dos
seus preconceitos confessionais, não tenha que comparecer
diante d`Aquele que pode pedir-lhe razão da sua injustiça. |
|
Não somente
os magistrados dos vários graus foram evangelizados
nesses dias, mas também altos funcionários de Ministérios,
questores, oficiais da polícia e dos "carabinieri",
oficiais generais da milícia fascista, prefeitos da província.
As oportunidades se multiplicavam e aquelas mesmas
portas, que pareciam irremediavelmente fechadas diante
de nós, se abriam para oferecer-nos a possibilidade de levar
o testemunho do Evangelho onde não teríamos podido chegar por
vias normais. |
|
Este novelo
de autoridades militares e civis foram os nossos
juízes e os nossos inquisidores, mas muitas vezes
os papéis se invertiam e eles assumiam a posição de
réus; a Palavra de Deus, nesse
caso, tornava-se o seu severo acto de acusação. Eles
eram sempre tomados por grande admiração ao ver a franqueza
e a coragem dos cristãos; estavam habituados a ver as pessoas
tremer diante deles e, pelo contrário, eis comparecer-lhes à
frente indivíduos de baixas condições sociais e sem qualquer
cultura, que não somente não tremem mas não perdem a fala
e expõem com franqueza a sua fé, a sua esperança e a doutrina
que professam. |
|
Nenhum
de nós pode dizer que resultado teve a evangelização
das autoridades, também a este propósito se pode
repetir: a eternidade revelará todas as coisas!
|
|
Porém,
pode-se afirmar que através da perseguição se cumpriram
os planos de Deus e as palavras de Jesus relativas
à evangelização das autoridades. O testemunho foi levado
aos grandes da terra e assim todos, nobres e plebeus,
encarcerados e juízes, cidadãos e autoridades, ouviram a mensagem
da graça. |
|
Um verdadeiro
desfile de autoridades era representado pela famosa
"Commissione per l’assegnazione dell’ammonizione e del
confino di polizia". Esta comissão era formada pelo Prefeito,
por um general da milícia, por um coronel dos "carabinieri",
pelo questor e por vários secretários. |
|
Muitos
cristãos compareceram diante desta terrível e temida
comissão para serem condenados ao exílio e a vigilância
apertada. Todos fomos condenados, mas eu creio que
os verdadeiros condenados foram os nossos juízes que, repetidamente
e pelos lábios de uma multidão de cristãos, ouviram o testemunho
quente
e sincero da salvação. Lembro-me que quando fui
chamado a comparecer (era então pouco mais que jovenzinho)
se verificou um facto curioso: as coisas que começaram
a debitar-me não se referiam à minha pessoa. Evidentemente
o secretário tinha confundido os documentos e tinha preparado
um acto de acusação privado de qualquer fundamento real. |
|
Fiz notar
que o acusado não podia ser eu, porque as coisas
contidas na declaração não correspondiam. Ficaram todos
confundidos...mas pronunciaram igualmente a condenação.
Mas eu, nesse dia, sentia-me cheio de alegria porque tinha
podido acrescentar a minha voz à dos outros e confirmar com
o meu testemunho pessoal o testemunho que já tinham dado os outros
irmãos. |
|
Sim, as
autoridades foram evangelizadas; o Evangelho que
queriam sufocar fez ouvir a sua voz poderosa e quando,
no dia de Cristo, os homens forem chamados a dar
conta das suas obras e dos seus sentimentos, também aqueles
que estiveram nos mais altos graus da hierarquia terão que
confessar ter ouvido falar de Jesus por um povo humilde e pobre
que eles maltrataram e perseguiram. |
|
|
Capítulo
5 - A minha primeira detenção |
|
A perseguição
começava a encarniçar-se contra a igreja e muitos já
tinham feito a experiência da detenção, dos insultos, das
ameaças. Em repetidas circunstâncias as reuniões tinham
sido interrompidas pela intervenção dos agentes da polícia
e os fiéis reunidos no lugar, geralmente uma casa de
habitação, transportados para a esquadra mais próxima. |
|
Eu não
tinha tido ainda esta experiência e julgava-me defraudado
de um privilégio. Tinha sido sempre assíduo nas reuniões
e sempre tinha continuado a minha actividade pública
de cristão, mas os planos de Deus tinham-me mantido fora
de semelhante circunstância. Quando a detenção
era efectuada numa casa, eu me encontrava
numa outra casa, e assim embora tendo presenciado
regularmente às reuniões de culto, era poupado. |
|
Mas finalmente,
e este finalmente indica a ânsia de poder combater
na linha da frente com todos os crentes, chegou a minha
vez. |
|
Estava
numa pequena e muito pobre casa de um irmão residente
na extrema periferia da cidade; casa que se compunha
de um único vão destinado a todos os usos que geralmente
são reconhecidos a uma casa. |
|
Não éramos
muitos; provavelmente a grande distância do centro
da cidade, unida à incomodidade de caminhos mal traçados
e sempre ricos de lama ou de pó, tornava este lugar,
naquela época que marcava apenas o princípio da perseguição,
o menos frequentado dentre os que estavam disponíveis. |
|
Tínhamos
iniciado a reunião de culto há cerca de vinte minutos
e estávamos empenhados a cantar, com voz tão triste
que parecia suspiro, um hino espiritual, quando
com o ímpeto do furacão a porta foi aberta sob a violência
de um empurrão vigoroso e, antes ainda que nos déssemos conta
do que estava acontecendo, três ou quatro indivíduos, exaltados
e violentos, nos mandaram suspender o cântico e pormo-nos
de pé. |
|
O mandamento
era completamente
supérfluo, porque a violência da acção tinha apagado
o cântico nos nossos lábios e quanto ao pormo-nos
de pé o tínhamos feito em obediência ao instinto. |
|
"Segui-nos!"
ordenaram os capangas, e logo acrescentaram: "Somos
comandados pelo Grupo local". |
|
Não eram
agentes da polícia, mas fascistas enviados para o
lugar por um dos muitos espiões dos quais naquela época
se servia o regime ditatorial que oprimia a Itália. |
|
Todos
permanecemos serenos, apesar da intervenção dos fascistas
poder significar a consumação de qualquer ilegalidade
e de qualquer violência. As páginas da mais recente história
italiana ainda pingavam sangue pelos comportamentos prepotentes
dos exércitos negros e não havia nenhum de nós que ignorasse
de quanto eram capazes, mesmo que só com o objectivo sádico
ou intimidatório, os assim chamados "grupos locais", isto
é, aqueles destacamentos e compartimentos que representavam
o partido nos diversos quarteirões da cidade. |
|
A nossa
serenidade e a nossa tranquilidade produziram talvez
uma impressão favorável sobre aqueles homens, porque,
sem insistir mais no seu comportamento de violência,
nos fizeram sair da casa e, sob os olhos curiosos da vizinhança,
entre os quais porventura não estavam ausentes os do complacente
delator; nos mandaram alinhar uns atrás dos outros; depois
nos dividiram em duas filas e nos mandaram pôr a caminho.
|
|
Ao longo
do caminho nos cobriram com os seus motejos
e as suas chacotas, aos quais nós respondemos,
por vezes com digno silêncio, e por vezes com oportunas
citações bíblicas aptas para clarificar o fim da nossa
esperança e da nossa fé. |
|
Chegámos
finalmente à sede do "grupo". Salas, salinhas, corredores;
algumas mobiladas com luxo e elegância, outras abandonadas
à incúria e à desordem; talvez umas para os hierarcas ou
para as cerimónias mais ou menos oficiais, outras simplesmente
para os inscritos ou para as actividades sociais; nós
fomos deixados num pátio ao ar livre sob a vigilância de um
capanga. Pouco depois começaram a acorrer os curiosos:
graçolas azedas, ameaças violentas, tudo se deitou sobre nós e
enquanto um nos prometia uma bofetada outro propunha à companhia
dar-nos uma daquelas abundantes doses de óleo de rícino pelas quais,
juntamente com os bastões, se tinham tornado tristemente célebres. |
|
Ninguém
nos fez nada, porque, soubemos a seguir, estavam
à espera da decisão do fiduciário, isto é, do chefe
do grupo. Ninguém nos fez nada, porque, como disse Jesus,
nem sequer um cabelo da nossa cabeça pode cair por terra
sem a aprovação de Deus e, portanto, sem que isso entre no plano
de Deus. |
|
Deus queria
que o nosso exercício fosse progressivo e por essa
vez nos fez conhecer apenas a emoção da detenção, a
prova dos insultos e dos escárnios e a experiência das ameaças. |
|
O fiduciário,
depois de nos ter feito esperar ao ar livre por
algumas horas, tomou uma benévola decisão: "Chamai os
agentes da polícia da esquadra mais próxima", ele disse,
"e entregai-lhes estes indivíduos". |
|
Esperámos
ainda um pouco de tempo, útil aos fascistas para
continuar os seus escárnios, e depois chegou um agente
da polícia. Mandou que lhe entregássemos os nossos documentos,
transcreveu diligentemente os nossos dados pessoais
e no fim sentenciou: "Podeis ir". |
|
Quando
saímos daquele lugar, estávamos todos alegres, mais
que pela libertação tida, pela graça realizada em Deus
por permanecer serenos e tranquilos na prova suportada
pelo Seu nome. |
|
Trepidantes
e cheios de alegria, alcançámos uma casa onde sabíamos
encontrar diversos fiéis e todos nos unimos para louvar
a Deus nesta experiência e sobretudo pela ajuda e pela
graça com que nos tinha sido pródigo. |
|
|
Capítulo
6 - Um culto ao ar livre
|
|
Estávamos
reunidos numa tarde de primavera, nas margens do Aniene,
o turbulento afluente do Tibre que corre na extrema
periferia da cidade. O lugar escolhido para as reuniões
de culto era dos mais acolhedores: uma vasta bacia rodeada
por espessas matas, que, enquanto nos isolavam da zona,
aliás deserta, que corria à nossa volta, nos mantinham também
num estado de recolhimento e de poesia. |
|
Não era
a primeira reunião que tínhamos nesse lugar e nunca
nos tínhamos arrependido da escolha feita, apesar
de que para aceder à bacia ervosa tínhamos que percorrer um
longo pedaço de estrada e superar árduas zonas acidentadas.
Naquele fim de tarde, entre o baixo salmodiar dos cânticos
e o menos baixo das orações, chegámos àquele ponto da reunião
que tudo cala para dar lugar à pregação da Palavra.
Um jovem irmão leu pacatamente o salmo 129 e depois lentamente,
mas com calor, começou a expor o seu sermão. Estava ainda
nas primeiras palavras, quando os arbustos verdes da mata se
dobraram violentamente e apareceram ao redor homens vestidos
à civil. Aparecer e saltar como feras entre nós foi quase uma só
acção. "Não vos movais, não fujais, ficai quietos", começaram a
gritar exaltadamente, "Somos agentes da polícia; estão detidos". |
|
Nenhum
de nós pensava em fugir, antes, permanecemos todos
quietos e tranquilos. |
|
Sossegados pela nossa atitude
os agentes, sem mais gritar, nos rodearam. “Agora
segui-nos”, nos disseram. |
|
O grupo
era muito numeroso, e por isso nos dividiram em duas colunas
e nos levaram, sob escolta vigilante, para o povoado. |
|
Os agentes
não estavam satisfeitos com a expedição; para chegar
ao lugar onde estávamos reunidos tiveram que, além
de cansar-se, sacrificar os seus sapatos e os seus fatos
à lama, aos arbustos, e por isso ao longo do caminho descarregavam
todo o seu mau humor com frases mordazes endereçadas às
nossas pessoas. |
|
Finalmente
chegámos a uma ampla planície onde estacionava o resto
do pelotão da polícia. Havia a esperar um carro de transporte
suficiente para umas trinta pessoas. Daqui começou
o transporte para a esquadra
de polícia
mais próxima, foram primeiro feitas subir parte
das irmãs e levadas velozmente para o edifício onde tinha
sede o posto de polícia que distava mais de um quilómetro
do lugar. |
|
Estas,
tudo menos assustadas, cantavam ao longo do percurso:
“Salvos estamos, não mais temas, por este caminho
se chega ao céu...” |
|
Não, caras
senhoras, interrompiam os agentes de escolta, por
este caminho se chega à prisão. Os agentes ignoravam uma
verdade preciosa, a saber, que o caminho de Deus passa pela
prisão, mas leva ao céu. Três, quatro viagens foram
necessárias para transferir o grupo inteiro da
planície
à esquadra. |
|
Ali fomos
amontoados num amplo salão, usado como refeitório
para os agentes, e deixados à espera de ordens. |
|
Enquanto
nos entretínhamos alegremente e serenamente em conversa
cristã entrou um indivíduo de rosto vermelho e de
olhos penetrantes; começou a fixar-nos atentamente um
a um; de vez em quando se detinha para um particular
exame, diante de um irmão ou de uma irmã; então se inclinava e
esticava o pescoço para a frente para concentrar a sua atenção
de alto a baixo. Feito o exame de todos, recomeçou do primeiro
e assim por diversas vezes. Nunca soubemos a razão dessa estranha
observação. |
|
Eu entretanto
começava a sentir uma fome aguda, naquela época
sofria estranhos distúrbios de estômago que eram provocados
precisamente pela fome e comecei por isso a pensar
naquilo que sofreria dali a pouco. Estava sem comer há
muitas horas e não havia probabilidade de comer tão cedo. |
|
Mas o
Deus, que alimentou o profeta pelos corvos, enviou
também a mim uma ajuda providencial e inesperada.
O corvo desta vez teve a roupagem de um agente que, tendo
permissão naquele dia para entrar mais tarde, foi ao refeitório
consumir a sua ceia. |
|
Tendo ficado curioso com a presença
de tantas pessoas começou a pedir-nos explicações
e a dar-nos, por conseguinte, a oportunidade de dar-lhe
testemunho da verdade. Eu me encontrava entre os primeiros
e entre os mais activos a responder às suas palavras.
O jovem ficou vivamente sensibilizado e num rasgo de simpatia
me ofereceu espontaneamente um pão com carne no meio; era
quanto bastava para aplacar as mordeduras
da fome e transferir o meu distúrbio
doloroso. |
|
Passaram
diversas horas; começaram os habituais procedimentos
burocráticos: entrega dos documentos de identidade,
interrogatórios, etc. |
|
Finalmente
chegou a decisão do comissário: "as mulheres sejam
libertadas, os homens pelo contrário sejam fechados
nos quartos de segurança". |
|
Para nossa
boa ventura os quartos de segurança em uso naquela
esquadra eram bastante amplos; mediam talvez quatro metros
por cada uma das paredes e portanto, quando fomos divididos
em grupos e postos 14 por 14 nas duas celas, não ficámos
demasiado apertados. |
|
Entrámos
naquela cela por volta das duas da madrugada e após muitas
horas desde a detenção, estávamos cansados e quase todos
não comíamos desde as primeiras horas da manhã, mas ninguém
mostrava cansaço e fome e todos concordámos em começar
imediatamente uma reunião de culto: não temíamos detenções
e não estávamos agitados por nenhuma trepidação; a polícia
nos tinha oferecido um local e uma oportunidade para realizar
uma reunião em completa liberdade. |
|
Lembro-me
claramente do texto do sermão: "Sê fiel até à morte,
e dar-te-ei a coroa da vida" (Apocalipse 2.10). |
|
Todos
fomos encorajados e consolados pelas preciosas palavras
do Senhor. |
|
Terminada
a reunião, visto que não se podia pensar na ceia (no
quarto de segurança dão de comer somente uma vez por
dia poucas gramas de pão com carne de cavalo ensacada),
pensámos em dormir. Neste momento surgiu o primeiro problema. |
|
Em nenhum
quarto de segurança existe uma cama e naquele, como
em todos os outros, havia somente o clássico "tavolaccio",
isto é, uma tábua de madeira da grandeza de 2x2 metros,
cravada na parede e sustentada na extremidade oposta
por um cavalete colocado num plano mais baixo, para dar
uma posição inclinada à própria tábua. Cerca de 25 cm mais
acima estava cravada na parede uma segunda tábua de largura
talvez 30 cm. que corria por todo o comprimento do "tavolaccio";
esta segunda tábua representava o travesseiro dos infelizes
que ali caíam. |
|
O tavolaccio
não era a cama mais desejável, mas, em todo o caso,
representava igualmente um meio para tentar conseguir
um pouco de descanso, mas como alojar 14 pessoas sobre
dois metros de madeira? |
|
Decidimos
fazer uma espécie de turno: alguns se acomodariam
sobre a tábua, outros no chão; após algum tempo trocaríamos
os respectivos leitos miseráveis.. E assim fizemos e assim chegámos
às primeiras luzes da manhã afortunadamente não distantes
da hora em que iniciámos o nosso incómodo descanso. |
|
Com a
luz poderíamos começar o nosso dia: lavar-nos, arranjar-nos.
Chamámos os agentes, mas estes nos responderam que estas
coisas não se usam nos quartos de segurança, porque os
que estão detidos nestes não devem sair por nenhuma razão
enquanto não se decide a sua sorte, a saber, ou liberdade ou prisão
judicial. Por este motivo, acrescentaram, existe aquele balde
de madeira, dentro da própria cela; e, assim dizendo,
nos indicaram um objecto imundo que jazia num canto do quarto,
que agora à luz do dia nos aparecia no seu real, horrível
estado. |
|
Paciência!
Resta-nos uma só coisa a fazer, dissemos uns aos
outros, e começámos uma nova reunião de culto. Não me lembro
de que modo tínhamos conseguido ficar em posse de uma cópia
de um pequeno Novo Testamento (todas as outras coisas nos tinham
sido tiradas, juntamente com os cordões dos sapatos e o
cinto das calças) e portanto, se tínhamos que nos servir apenas
daqueles hinos que sabíamos todos de memória, podíamos nos
servir, no sermão, da escritura. |
|
O dia
passou em santa letícia; as horas passaram nas conversas
cristãs e nas orações e de tarde realizámos uma terceira
reunião de culto. |
|
Não nos
deram muito de comer e nem quiseram nos passar o que as
irmãs, desde as primeiras horas da manhã, levaram à esquadra
(Naqueles dias não existia uma organização,
mas tudo era organizado de modo perfeito pelo Espírito
de Deus), mas o Pai celestial nos alimentou abundantemente
das palavras da Sua boca. |
|
Durante
o dia fomos interrompidos frequentemente pelas visitas
de controlo dos agentes: estes abriam a porta,
contavam-nos, diziam-nos alguma frase de escárnio, e
depois voltavam a fechar a porta diante de nós. |
|
Chegou
a noite e já nos preparávamos para começar um novo turno
sobre o "tavolaccio", quando a porta se abriu violentamente
e um nome foi pronunciado imperiosamente. O irmão
chamado seguiu o agente; esperámos muito tempo, mas não
voltou. É demasiado tarde, dissemos, para uma transferência
para a prisão judicial, talvez por esta vez nos deixam em liberdade. |
|
A porta
se abriu de novo: um segundo nome: "Por que nos chamam?"
perguntámos ao agente “Para serem postos em liberdade”,
foi a resposta. |
|
Um após
outro os irmãos começaram a sair. Chegou também a minha
vez (fui o penúltimo) e fui levado perante um funcionário
que me cobriu de ameaças e ao qual naturalmente dei
a única e simples resposta: "Eu devo fazer a vontade de Deus"
e depois fui conduzido ao corpo de guarda onde me foram
restituídas todas as coisas que me tinham sido tiradas:
cordões, cinto, lenços,
carteira, dinheiro, etc. |
|
Era noite
quando saí à rua, mas encontrei ali a esperar-me,
diversos outros irmãos e irmãs que tinham vindo esperar-nos. |
|
Esta experiência
estava passada; glorificámos juntos o Senhor e
unidos nos preparámos para atender aquilo que havia ainda
de vir. |
|
|
Capítulo
7 - Prisão Judicial
|
|
Veio um
período que parecia de trégua para a igreja: uma
amnistia ampla e generosa interrompeu a minha condenação
a dois anos de vigilância especial; os desterrados voltaram
às suas casas; outros, como eu, foram perdoados e todos
juntos passámos diversos dias de alegria puríssima na comunhão
fraterna. |
|
Muitas
famílias reabraçaram os seus entes queridos, exilados
longe; outras dissiparam a trepidação que as mantinha
em ânsia pelos seus familiares sujeitos a liberdade
vigiada, condenação que mantém continuamente, aqueles que
são sujeitos a ela com um pé na prisão e outro fora, e todos
exultámos pelas cadeias quebrantadas e pela consolação de rever
muitos fiéis longamente separados de nós por causa do seu desterro. |
|
Parecia
que tinha chegado, se não o fim, uma longa trégua
na perseguição, mas poucos dias foram suficientes
para convencer-nos do contrário. |
|
Encontrava-me
numa destas alegres noites em casa da família L...
para presidir uma reunião de culto. O pai e a filha maior
tinham voltado recentemente do degredo; ele se
encontrava nessa noite seriamente doente, enquanto sua
filha tinha ido presenciar uma reunião de culto que se realizava
num bairro baixo da cidade. |
|
Em casa
estava somente a mãe que recebeu extensamente todos
os fiéis que afluíram à sua casa. |
|
Apesar
da doença do marido estava cheia de alegria. Não só
tinha abraçado os solitários regressados do degredo, mas
para o dia seguinte esperava também a volta das suas
duas filhas menores que terminavam precisamente naquele
dia a sua pena de prisão de três meses cada uma. |
|
Estas
duas jovens irmãs tinham tido esta condenação por terem
sido julgadas culpadas de transgressão à "vigilância
especial" e tinham passado grande parte da sua detenção
em celas em comunas, unidas a mulheres criminosas
da pior espécie. Elas tinham encontrado esta prova por presenciar
uma reunião de culto. |
|
Mas a
condenação já tinha chegado ao seu término, os três
meses tinham passado; a família, após várias e
aventurosas vicissitudes, voltava a compor-se e
por isso a velha mamã estava transbordante de serena alegria
cristã. |
|
Os diversos
fiéis se acomodaram o melhor que podiam na não muito
grande cozinha, que representava a divisão da casa mais
distante da porta de entrada (geralmente se usavam
estas precauções para não fazer ouvir ruídos no exterior)
e eu abri o serviço de culto: levantámos em voz baixa alguns
hinos, depois, prostrados em oração, elevámos os nossos louvores
e as nossas petições; mais um hino e a seguir alguns
testemunhos. Após estes iniciei o sermão: li o salmo 144 e
tomei como texto os primeiros dois versículos. Mas estava apenas na
introdução, quando um toque prolongado, além de toda a conveniência,
da campainha fez-me compreender que alguma coisa estava a acontecer;
em todo o caso, não me interrompi, mas
pude pronunciar apenas poucas
outras palavras, porque um clamor de vozes exaltadas e de passos
apressados deteve o sermão sobre os meus lábios. |
|
Da porta
uma voz sonora e irada exclamou:
"É Bracco que fala".
|
|
Em poucos
minutos a casa foi literalmente invadida por um pelotão
inteiro de agentes da polícia. Eu os conhecia quase
todos porque vinham da esquadra do bairro em que eu
morava. |
|
"Segui-nos!"
foi a ordem imperiosa. Era inútil demorar; nos pusemos
a caminho e em poucos minutos nos encontrámos todos
no local da esquadra. |
|
Começáram
as práticas às quais já estávamos habituados e compreendemos
logo que as intenções do comissário eram mais severas.
De facto eu, juntamente com quatro irmãos (um depois
foi libertado na manhã seguinte) e a velha mamã juntamente
com uma irmã, fomos retidos e levados para o rés-do-chão
para ser internados nos quartos de segurança. |
|
Enquanto
esperávamos pacientemente a execução das práticas relativas
ao nosso encarceramento, desceu para ver-nos um severo
funcionário com o qual muitas vezes tinha tido relações,
em consequência da perseguição, e que sempre me tinha
parecido um terrível mastim. Ele olhou para mim e depois disse-me
duramente, mas com um tom de benevolência,
"Bracco te arruinaste!" O meu aspecto, tudo
menos assustado, deve porém tê-lo convencido que não era
um indivíduo completamente equilibrado e por isso,
sem acrescentar mais nada, virou as costas e afastou-se. |
|
Pouco
depois fomos chamados pelos agentes de custódia e fomos
convidados a tirar os cordões dos sapatos, o cinto das
calças, e a depositar tudo aquilo que tínhamos nos
bolsos. |
|
Eu tinha,
junto com outras coisas, uma cópia do Novo Testamento
e Salmos e isso me havia de servir para experimentar
a fidelidade de Deus. De facto, no período que todos
os fiéis cosiam páginas da Bíblia no interior das suas
roupas ou as colavam entre as solas dos seus sapatos para
ter a alegria de podê-las levar para o interior das prisões onde
era impedida, do modo mais absoluto, a leitura das Sagradas
Escrituras, eu me tinha recusado a seguir estas medidas
de prevenção e tinha repetidamente declarado:
"Sinto que Deus me ajudará a levar a Sua palavra também
ali onde é combatida." |
|
Eu por
isso deixei o meu pequeno Novo Testamento no bolso do
casaco. Concluído o inventário dos objectos entregues,
se aproximou de mim um graduado da polícia para submeter-me
à revista prescrita. Apalpou as minhas roupas, os meus
bolsos e chegou com a sua mão ao bolso do casaco onde tinha
deixado o precioso livrinho. |
|
"
Isto não se pode ter!" me disse resolutamente. |
|
"É simplesmente
uma cópia do Novo Testamento".
Respondi eu com uma ingenuidade naturalíssima naquele
momento. |
|
Não me
respondeu, continuou o seu exame, chegou pela segunda
vez com a sua mão ao bolso inchado do casaco e só então
repetiu: "Isto não se pode ter!" "Mas é a Palavra de Deus",
insisti eu com simplicidade. |
|
O agente
foi vencido, abriu-me a porta da prisão e me convidou
a entrar. Passei a soleira do quarto miserável e sujo
com uma alegria no coração: tinha a Sagrada escritura
comigo. |
|
Os meus
companheiros seguiram-me pouco depois e juntos dividimos
a alegria da vitória e dividimos também o jejum e a insónia.
Não nos deram de comer e não conseguimos dormir
sobre aquela única cama comum de tábuas fixadas na parede,
sem colchão e com uma única coberta rasgada e imunda. |
|
No dia
seguinte, às primeiras luzes do amanhecer, sentimos alguém
chamar por nós e com nossa grande surpresa ouvimos a voz
da irmã que tinha voltado há pouco do degredo. |
|
"Onde
estás?" perguntámos. |
|
"Na cela
ao lado da vossa". |
|
"Porquê?"
|
|
"Ontem
durante a noite", ela nos disse, "os agentes da polícia
voltaram novamente para me prender como co-responsável
da reunião à qual eu estava ausente. Queriam prender
também o papá", ela continuou, "mas a sua grave doença o
fazia intransportável". |
|
Continuámos
a conversa até uma interrupção patética. As filhas
libertadas da prisão, encontrada a casa em desordem
e no abandono e conhecendo o motivo da pressentida surpresa
(enquanto faziam a viagem de volta tinham recebido
um aviso no Espírito), chegaram à prisão para ver e beijar
a irmã e a mãe. Foi-lhes consentido por poucos instantes
e assim interromperam brevemente a nossa conversa. |
|
Chegou
a tarde, a porta de repente se abriu: "Vamos sair?" nos
perguntámos admirados. A nossa admiração era das
mais legítimas, porque essa saída se referia simplesmente
a uma transferência do chamado "quarto de segurança"
para a "prisão judicial". |
|
Devolveram-nos
apressadamente e sem ordem os objectos que tínhamos
depositado e nos levaram para fora, sob escolta armada,
onde estava à nossa espera uma carrinha fechada, em chapa cinzento-verde. |
|
Fomos
todos tomados a cargo
por outros agentes da polícia e carregados,
como mercadoria fora de uso, numa carrinha já repleta
de criminosos recolhidos nos diversos quarteirões da cidade. |
|
Na rua
estava à nossa espera um pequeno grupo de cristãos que
queriam tributar-nos de longe a
sua saudação afectuosa e fraterna. |
|
A carrinha
fez um percurso vicioso pela cidade e finalmente chegámos
à dita prisão judicial que nos devia receber. |
|
Foram
primeiro "descarregadas" as
mulheres na repartição reservada a estas e ali nos saudámos
com as irmãs encorajando-nos mutuamente no Senhor. A seguir
veio a nossa vez; a carrinha passou uma cancela; depois uma
outra, uma outra ainda e parou. Descemos juntamente com
aqueles que se tinham tornado os nossos companheiros e a pé
ultrapassámos outras cancelas, outras portas de ferro até aos
escritórios onde se deviam fazer as formalidades do costume:
|
|
·
Impressões digitais. |
·
Dados pessoais. |
·
Depósito do dinheiro. |
|
Fomos
depois conduzidos a uma pequena cela para o depósito
dos objectos proíbidos. Depositámos cordões, cintos,
alfinetes, fivelas e tudo o que tínhamos nos nossos bolsos.
Posteriormente nos fizeram despir para que os indumentos
pudessem ser submetidos a um controlo cuidadoso. |
|
Tudo,
tudo foi amontoado sobre uma mesa diante dos nossos
olhos. |
|
Fomos
convidados a revestir-nos; logo depois de concluída esta operação,
eu estendi com naturalidade a minha mão para pegar no
meu Novo Testamento. |
|
"Não podes
pegar nele!"
me disse o guarda chefe
sem aspereza.
|
|
"Porquê?
– perguntei – É a Palavra de Deus".
E ao falar assim mostrei
o livrinho aberto no frontispício. O severo funcionário
recebeu a minha naturalidade com benevolência e me respondeu:
"Deixa-o agora, to levarei depois à cela.. " E esse
homem foi veraz. Deus tinha premiado a confiança que eu
tinha colocado na Sua ajuda omnipotente. |
|
Acompanharam-nos
a um armazém e carregaram-nos do nosso equipamento
carcerário: coberta, lençol, tigela de alumínio, colher
e garfo de madeira, copo de alumínio, etc. |
|
Com a
noite avançada, fizemos a nossa entrada na nossa nova
residência. Vale a pena descrevê-la: um pequeno
quarto de comprimento 3, 50 m e largura 1, 50 m; fornecido
de um pequeno beliche com três camas em ferro e quatro pequeníssimos
colchões cheios de palha. Uma janela no alto com barras
de ferro robustíssimas e com persianas de madeira puxadas para
cima, um banco de madeira e num canto um grande balde de terracota. |
|
No meio,
suspensa a um fio eléctrico, uma lâmpada de cor azul. |
|
Essa era
a nossa morada durante 23 horas do dia. Uma hora do
dia, de facto, está reservada para deixar os prisioneiros apanhar
" ar " e isto acontece em pátios húmidos e sombrios, e
as outras 23 horas têm que ser passadas na cela onde não existe
uma casa-de-banho, não existe água corrente, onde não há ar suficiente
e onde não há sequer espaço suficiente para nos movermos. No
entanto, tudo tem que cumprir-se ali, em detrimento do pudor, da
higiene, da moral. Nós nos apercebemos da existência de três
camas e fizemos notar a falta da quarta, mas o guarda nos explicou
que o espaço não consentia a existência de uma quarta cama. |
|
"Se quiserdes",
acrescentou, talvez com despeito, "um de vós pode
ser transferido para outra cela". |
|
Preferimos
permanecer juntos e cedo nos apercebemos que entre
dormir no chão e dormir sobre a cama não havia diferença.
A dureza era idêntica, os insectos eram abundantes em
ambos os lugares. |
|
Naqueles
dias se encontravam na mesma prisão diversos irmãos
condenados anteriormente e excluídos da amnistia;
procurámos logo, por meio dos guardas, enviar-lhes
mensagens, mas foi um trabalho inútil, porque todos se recusaram
em colaborar e tudo o que pudemos fazer foi só trocar entre
nós uma ou duas vezes um pouco de comida que providencialmente
tínhamos recebido do exterior. Digo providencialmente,
porque a sopa diária e os dois pães, que nos eram dados
todos os dias não eram absolutamente comestíveis. Os dias passavam
lentamente e com monotonia que teria sido oprimente se a presença
da Escritura não nos tivesse oferecido a frequente possibilidade
de interrompê-la. Tudo se desenvolvia mecanicamente e
uniformemente: acordar, limpeza da cela, ração, controlos diários
e nocturnos das barras, distribuição da água, retirada das
imundícias; toda a vida está encerrada dentro destas coisas
que enclausuram a vida mais
do que quanto possa fazer a própria cela. |
|
Nós crentes
naturalmente tínhamos acrescentadas a estas coisas oração,
leitura do Evangelho, conversas cristãs, e também ali
brilhava o raio luminoso da esperança e da alegria. |
|
Chegou
o dia do processo; Deus interveio de um modo prodigioso;
fomos milagrosamente absolvidos; o juiz declarou, coisa
excepcional para aquela época, que orar a Deus segundo
os ditames da própria consciência não constituía crime. |
|
Voltámos
para a prisão cheios de alegria pela ajuda divina e,
porque não, cheios de embriaguez pela iminente libertação,
mas havia reservada uma surpresa. À tarde não fomos postos
em liberdade. Pedimos explicações e nos foi respondido:
"Fostes absolvidos pelo magistrado, mas agora estais
à disposição da Questura central." |
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Outras
perguntas que dirigimos nos fizeram saber que a questura
tinha o direito de manter-nos em prisão, à sua disposição,
pela duração de seis meses. No fim deste período podia
pedir a nossa transferência para um quarto de segurança
para depois reenviar-nos no dia seguinte novamente para a
prisão; podia assim começar um outro período de seis meses. |
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Com este
procedimento burocrático podíamos ser mantidos em
estado de detenção por anos e anos. Esta experiência nos
fez ver claramente quais são os recursos de um regime prevalentemente
policial. Ele pode operar sempre acima dos direitos humanos,
das leis, da magistratura. O Seu poder estatal é terrível. |
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Mas Deus
tinha começado a operar e ele não deixa a meio a obra
que quer levar a termo. Nunca soubemos aquilo
que
o Senhor
fez naqueles dias, mas na tarde do dia
seguinte estávamos novamente em liberdade, recebidos
com gozo pelos irmãos e todos juntos alegres no Senhor. |