Roberto Bracco

 

Perseguição em Itália

 

 

Título original:

Persecuzione in Italia

 

Primeira Edição, Roma 1954

Segunda Edição, Roma 1964

Tradução: Hugo Castro






Introdução

 

A Itália sempre foi um país de violenta e algumas vezes cruel intolerância religiosa. Através dos séculos milhares e milhares de cristãos derramaram o seu sangue generoso pelo testemunho do Evangelho e muitas vezes colónias inteiras de crentes foram mortas pelas armas para tentar sufocar com a sua morte, a proclamação da verdade.

 

Quando falo da Itália, não me refiro ao poderoso Império romano que desde Nero em diante organizou e conduziu as suas sangrentas perseguições contra os cristãos; mas falo exclusivamente das repressões exercidas sobretudo, por influência do catolicismo oficial, desde a época dos primeiros Valdenses aos nossos dias.

 

Este nosso país, tão sensível aos problemas religiosos, nunca gozou infelizmente, da liberdade conquistada por outros povos e se arrastou, através dos séculos, e se arrasta, também na nossa geração sob o peso das cadeias apertadas pela igreja católica à volta da sua vida.

 

É lógico, portanto, que também o nosso movimento encontrasse desde o seu início, hospitalidade hostil e oposição organizada. Antes, posso acrescentar, hostilidade mais acentuada do que a manifestada em relação a outros movimentos, que pareciam de menor perigosidade com respeito à igreja católica. Apesar deste estado de coisas, as nossas igrejas, porém, não sofreram uma verdadeira perseguição durante muitos anos, e isto sobretudo por duas razões. A primeira razão é constituída pelo facto que por muitos anos a obra viveu em fase de gestação: as igrejas eram poucas e os membros destas não eram numerosos. A actividade do movimento não era por isso excessivamente visível e notavelmente preocupante para os adversários do evangelho. A segunda razão é constituída pela condição política da nossa nação anteriormente ao ano de 1929.

 

O Estado italiano vivia, nessa época, em aberto e oficial conflito com a igreja católica, em consequência dos acontecimentos bélicos de 1870 nunca sanados e nunca superados. O governo, por conseguinte, estava desvinculado de interferências ou influências das hierarquias eclesiásticas e antes não raramente era induzido a agir num espírito liberal abertamente em contraste com os desejos da igreja católica. Estas duas razões, porém, desapareceram espontaneamente nos anos imediatamente anteriores à perseguição; o movimento, superado o período de gestação, conheceu o seu rápido e vigoroso desenvolvimento numérico e espiritual, e a situação política sofreu uma radical transformação em consequência da Conciliação entre o Estado e a igreja e do tratado lateranense, que da conciliação foi a filiação natural.

 

O movimento não podia mais passar despercebido e ao mesmo tempo o governo não podia mais tolerá-lo incondicionalmente, quando a nova situação política lhe sugeria satisfazer o mais largamente possível os desejos e os objectivos da igreja católica. A partir de 1929 começaram por isso os sinais da incipiente perseguição e se esta não teve início nesse ano, foi somente porque a máquina burocrática governamental foi lenta a pôr-se em movimento. Houveram, porém, casos isolados periféricos de violenta intolerância que marcaram o princípio da batalha. O conflito, no sentido rigoroso deste termo, estalou no ano de 1935, pois foi no princípio desse ano que o então subsecretário do Ministério do Interior (o ministro era o próprio Mussolini que gostava de acumular cargos), após ter declarado nulo o decreto de nomeação para ministro de culto ao pastor da nossa comunidade de Roma, iniciou a sua enérgica acção repressiva.

 

O nosso movimento nunca tinha sido oficialmente reconhecido pelo Governo, e de todos os ministros de culto em actividade, somente o da igreja de Roma tinha obtido um decreto que lhe reconhecia o direito de exercer o seu ministério espiritual e de presidir reuniões de culto públicas. Ele, porém, gozava o privilégio de conceder delegações a outros ministros assumindo a responsabilidade pela actividade deles. Com a revogação portanto do único decreto concedido, o Ministério contestava ao mesmo tempo o direito ao pastor da comunidade de Roma de exercer o seu mandato espiritual e a todos aqueles que tinham sido por ele delegados, a faculdade de realizar e presidir reuniões de culto públicas.

 

As autoridades periféricas de segurança pública tomaram imediatamente providências para intimar os proprietários dos locais onde eram realizadas as reuniões e os condutores das comunidades para não realizar mais reuniões de culto. Quase todas as igrejas foram fechadas e permaneceram somente abertas as poucas que por algumas semanas e alguns meses fugiram à observação das autoridades de segurança pública. Mas se os locais, destinados oficialmente ao culto público, foram solicitamente fechados, as actividades dos fiéis não cessaram. Imediatamente e com aquela prontidão que representa um dos maravilhosos recursos do Espírito, as comunidades se organizaram para iniciar a sua nova vida; a vida em clima de perseguição.

 

A organização das comunidades não foi uniforme porque cada uma destas procurou a adaptação em relação às particulares circunstâncias do ambiente. Nas cidades, por exemplo, foi fácil ao princípio realizar reuniões de culto privadas nas casas de habitação subdividindo-se em diversos grupos nas várias zonas da própria cidade. Nos pequenos povoados, ao invés, onde esta organização não podia passar despercebida, procurou-se antes aproveitar o favor dos campos longe das casas, ou a oportunidade oferecida pelas longas noites da localidade; e assim as reuniões ou eram realizadas em lugares longínquos e escondidos ou eram realizadas em voz baixa em plena noite.

 

Este estado de coisas não podia durar, porque os mesmos, que tinham pedido a repressão do movimento, foram solícitos em informar as autoridades relativamente à continuação da nossa actividade. Do Ministério do Interior partiram então várias enérgicas circulares reservadas, dirigidas aos prefeitos e aos comandantes da polícia, com as mais precisas e detalhadas instruções acerca das providências a adoptar-se em relação ao movimento e aos fiéis, na eventualidade de se verificar o desenrolar de qualquer actividade. Uma dentre estas circulares, enfrentava de maneira particular e resolutiva a questão aberta. Refiro-me à já famosíssima circular n. 600/159 de 9 de Abril de 1935 assinada por Buffarini-Guidi, que ordenava a dissolução e a repressão de todas as comunidades e de qualquer actividade do nosso movimento justificando a medida com a necessidade de salvaguardar a integridade física e psíquica da raça. O regime fascista, é preciso não esquecer, propugnava a diabólica filosofia do super-homem e, portanto, aquela consequente da discriminação racial. A defesa da integridade da raça representava por isso um fenómeno político de importância vital na vida da nação e os atentados à integridade da raça assumiam o aspecto jurídico de delito político. O movimento pentecostal veio por isso a encontrar-se no campo das actividades políticas condenadas pelo regime e, coisa pior, veio apontado como um movimento gerador de diminuídos físicos e psíquicos, isto é, gerador de doentes e loucos. Não é difícil compreender de onde partiu o ataque como não é difícil identificar o motivo que inspirou esta acusação antes que uma outra.

 

Tudo foi organizado com crueldade e com astúcia maléfica. Também a opinião pública foi habilmente manobrada em benefício da perseguição. Uma prolongada campanha jornalística desenvolvida pela imprensa totalmente submetida ao governo, encarregou-se de cobrir de opróbrio e de ridículo todas as nossas comunidades: as mentiras mais despudoradas, as insinuações mais audazes foram diabolicamente exploradas para alcançar este objectivo.

 

Este imenso campo de batalha em perfeito estado de guerra não podia permanecer inerte; os ataques partiram bem cedo e cobriram a frente de estrondo ensurdecedor: veio a perseguição.


Detenções após detenções; exílio, prisão, processos, repatriamentos, ameaças, açoites... Estes ataques já não podiam ser identificados em ordem distinta, porque um só estrondo formado de cem, mil ataques envolveu o movimento numa luta de dimensões gerais. Passaram assim lentamente os oito anos de lágrimas e de sangue, que foram porém também anos de bênçãos e de poder. Nestes anos os filhos de Deus conheceram as experiências mais vivas do cristianismo. Não somente as experiências dolorosas, e necessárias, da prisão, da separação, da angústia, do perigo constante e tormentoso, mas também as luminosas e alegres das libertações, das bênçãos inefáveis, do milagre.


Estes oito anos podem ser reconstruídos dia por dia, porque mesmo hoje, que nos aparecem à distância, nos aparecem nos detalhes mais vivos. Como esquecer os lentos e furtivos êxodos para os campos longínquos para reunir, com o favor da noite, longe dos olhos indiscretos? E como esquecer as reuniões de culto solenes e trepidantes , realizadas no coração das cavernas ou das grutas? Como esquecer as repetidas partidas, cheias de comoção e de pranto que exilavam os irmãos, para longe das comunidades? Como esquecer os múltiplos processos que nos juntavam no banco dos réus, aos ladrões, às prostitutas, aos mendigos? Como esquecer as celas das prisões ou dos quartos de segurança onde passávamos dias de sofrimento, mas também de alegria cristã? Como esquecer as inumeráveis detenções cheias de circunstâncias emocionantes e de episódios dramáticos? Não, estas coisas estão vivas na memória de todos os que as viveram; mas não representam, porém, uma recordação opressiva ou assustadora, antes uma doce recordação com leves tons nostálgicos que fala de lutas, mas também de vitórias; de dores mas também de bênçãos, sobretudo que fala de uma vida cristã intensamente vivida; vivida até ao sacrifício, até à renúncia, até à dor, com todo o ímpeto de corações realmente transbordantes do amor de Cristo. Muitos cristãos invocam hoje os dias da perseguição, porque recordam claramente que o fogo da luta era também o fogo da santificação, o fogo da fidelidade. É audaz afirmar que a perseguição representa saúde espiritual, mas é também audaz sustentar que ela constitua um dano para a igreja cristã e é mais lógico aceitar o princípio de que tudo aquilo que Deus prepara na vida do seu povo é para o bem e para a prosperidade. Por isso hoje, que um clima de parcial tolerância (*) afastou a luta quotidiana da perseguição, nós não invocamos uma nova perseguição, como não sofremos agonias por uma absoluta liberdade, mas invocamos e esperamos o cumprimento do plano que Deus, o Deus de toda a sabedoria, preparou para nós.


 (*) O livro foi escrito há cerca de 40 anos .

 


Capítulo 1 - O nosso Deus, a quem nós servimos é poderoso para nos libertar.

 

... O nosso Deus, a quem nós servimos é poderoso para nos libertar... (Daniel 3:17).

 

A frase dos três irmãos hebreus foi, durante o período da perseguição, o mote e também a regra espiritual das comunidades de Itália.

 

Todas as igrejas e todos os fiéis fizeram o seu caminho com a convicção profunda que Deus era poderoso a manifestar ajuda e libertação em todas as provas. Portanto as provas, as dores, as perseguições não representavam, para os cristãos, um sinal da fraqueza ou impotência de Deus, mas somente uma manifestação dos seus planos e da sua vontade.

 

Sempre, de facto, perante os ferozes agressores os cristãos repetiram o testemunho de Sadraque e dos seus companheiros: "O Deus que servimos é poderoso a nos libertar".

 

Quantas vezes vimos diante de nós funcionários espumando de raiva, quase loucos de ira, que, parecia, quererem triturar-nos, aniquilar-nos! Quantas vezes ouvimos gritar na cara as suas terríveis ameaças; quantas vezes se apresentou aos nossos olhos o espectáculo de um poder humano, de um poder infernal que parecia esmagar-nos!... Amedrontámo-nos ou reconhecemos a grandeza deste diabólico poder? Não! Continuámos a repetir, perante os perseguidores, mas sobretudo no íntimo do nosso coração: "Deus é poderoso para nos libertar!"

 

Esta convicção e este testemunho não foram, porém, nunca independentes da convicção expressa na segunda frase dos três companheiros hebreus: "Se Deus não nos libertar, nós faremos igualmente a Sua vontade"

 

Ele é poderoso para nos libertar, mas se, para o cumprimento dos seus planos gloriosos e eternos, considerar mais oportuno deixar-nos no fogo da perseguição, nós continuaremos igualmente a honrar e glorificar o Seu nome com fé e dedicação.

 

Nestes termos o nosso testemunho resultava completo e a nossa convicção sã e perfeita. Nos liberte ou não nos liberte, avante; avante com o Senhor. E todos juntos repetindo estas doces e poderosas palavras, prosseguimos o nosso caminho.

 

O Deus fiel muitas e muitas vezes nos mostrou e demonstrou que era poderoso a fazer libertações milagrosas em nosso favor e estas repetidas demonstrações foram suficientes naqueles dias para nos recordar que quando Ele não nos libertava tinha que cumprir, no nosso sofrimento, um plano para a sua glória e para a nossa edificação.

 

Pessoalmente tive modo de experimentar repetidamente a intervenção milagrosa de Deus e de constatar por isso que tudo se desenvolvia segundo os planos inteligentes que o Senhor devia levar a execução. Dentre as muitas libertações lembro-me de uma realizada longe da minha cidade. Fui convidado para ir a Terni, onde tinha surgido uma pequena comunidade cheia de fervor e de entusiasmo cristão. Aceitei o convite e dirigi-me para essa cidade juntamente com uma irmã da comunidade. Assim que chegámos, dirigimo-nos para casa de uma família de fiéis que estava à espera da nossa chegada e ali iniciámos uma conversa cristã. Estávamos lá somente há pouco tempo, talvez 30 minutos, quando chegou um jovem irmão todo atarefado a avisar-nos que um notável número de agentes de segurança pública tinham invadido diversas habitações de fiéis e em todo o lado perguntavam por mim. Procuravam-me activamente para me prenderem. Por quem tinham sido informados da minha chegada nunca pude sabê-lo, mas uma coisa soube naquela ocasião: eu era procurado.

 

Sem demora deixei aquela casa e pus-me a andar pela cidade juntamente com a irmã que me tinha acompanhado. Peregrinámos longamente esperando confiantemente os eventos, mas a trepidação nos inflamava o coração; estávamos ansiosos pelos fiéis junto dos quais a polícia me procurava.

 

Caminhando em todas as direcções, procurei restringir o círculo dos meus passos para a casa da família que representava o centro da comunidade do lugar. Cheguei nas proximidades daquela casa e procurei observar de longe o que estava a acontecer. Não consegui notar nada e por isso decidi-me, avançando cautelosamente, aproximar-me da casa. A zona estava quase deserta e eu com aparente desinteresse e indiferença caminhei para o portão.

 

Cheguei diante da entrada: nada! Tudo silêncio. Não sabia se entrar ou afastar-me; de repente tomei a decisão de encostar-me à janela que estava ao lado do portão, à distância talvez de um metro para procurar observar, através dos postigos fechados o que acontecia no interior. Com a máxima cautela me aproximei e procurei olhar para o interior. Os postigos estavam muito fechados e o meu olhar não conseguia penetrar através das fissuras, estava intensamente concentrado no meu intento, quando de repente me achei rodeado por um denso grupo de guardas. Eram vinte? Eram trinta? Não poderei dizê-lo mas lembro-me claramente que eram muitíssimos. Tinham chegado por trás de mim sem que me apercebesse disso; porque estava profundamente concentrado a tentar superar o obstáculo dos postigos para poder ver o que se passava no interior da casa. Voltei-me: os guardas estavam à minha volta; estávamos absolutamente sozinhos naquela zona. Não me desencorajei, antes decidi caminhar; atravessei o círculo dos guardas; afastei-me, perdi-me novamente na cidade longe deles e da sua raiva.

 

O que aconteceu? Não sei; mas eu creio que os guardas olharam para mim sem me ver; rodearam-me sem se aperceberem que eu me afastava tranquilo atravessando as suas fileiras. Sim, o nosso Deus é poderoso a nos libertar; a nos libertar individualmente, como fez muitas e muitas vezes comigo e com todos os fiéis durante a perseguição; e também a nos libertar colectivamente, quando com estes meios pretendia glorificar o Seu nome. Quantas vezes a polícia acreditava ter-nos na mão enquanto nós lhe saíamos da dita de maneira milagrosa! Quantas vezes era obrigada a consumir-se de raiva por causa dos métodos maravilhosos que Deus usava para esconder-nos dos olhos de quantos nos combatiam!

 

Lembro-me, dentre as muitas memórias, de uma libertação tão poderosa quanto graciosa. Realizava-se uma reunião de culto em noite avançada no fundo de um campo situado na extrema periferia da cidade. Os fiéis conheciam o lugar, porque tinha sido usado muitas vezes para o mesmo objectivo e se encontraram ali pela hora estabelecida.

 

A escuridão de uma noite sem lua rodeava os fiéis de uma densa cortina. Iniciaram os hinos em voz baixa ...

 

De repente, coisa estranha, duas, três, cinco, oito pequenas luzes se acenderam no meio do grupo. Eram fogos de cigarros. Os fiéis compreenderam que diversos inconvertidos se encontravam naquele mesmo lugar, mas não se preocuparam; a reunião continuou regularmente. Após os hinos, a oração; após a oração, mais um hino; depois os testemunhos, a pregação, um hino, uma segunda oração, e por fim a reunião se encerra.

 

Todos tomaram o caminho de volta e espalhadamente alcançaram novamente a cidade para encaminhar-se para as suas habitações.

 

Uma semana depois viemos a saber, de maneira verdadeiramente milagrosa, que um grupo de guardas, enviados expressamente para prender os fiéis, tinham estado presentes na reunião sem poder executar a ordem recebida.

 

Eles tinham vagado longamente pelos campos e finalmente, guiados também pela voz, que, embora leve era levada pelo silêncio da noite, tinham chegado ao meio do grupo. Antes de proceder à operação de polícia tinham querido escutar: os cânticos os comoveram, os testemunhos e as orações suscitaram um sentimento de reverência nos seus corações, depois chegou a pregação que os compungiu. Deus os venceu e eles estavam  no fim da reunião decididos a voltar para os superiores apenas para anunciar que a operação tinha sido infrutuosa.

 

Sim, o nosso Deus é poderoso a nos libertar!

 

A certeza neste poder era o nosso conforto quando a libertação tardava ou não vinha. Dizíamos todos no íntimo do nosso coração: “Deus poderia libertar-nos; se não nos liberta, é somente porque tem um plano glorioso a cumprir, ou porque quer provar a nossa fidelidade para com o Seu nome”. Este pensamento íntimo mas sólido dava-nos força para repetir perante os agressores: “Ainda que o Senhor não nos liberte, nós continuaremos a fazer firmemente a Sua vontade”.

 

E Deus verdadeiramente permitiu, naquela época, provas que, consideradas hoje, parecem bem duras. Digo: “consideradas hoje” porque ontem, enquanto as atravessávamos, nos pareciam coisas normais e quase de pouca importância: a virtude da graça de Deus nos fortificava para sustentar e superar todas as coisas com facilidade.

 

Mas hoje, olhando para trás, podemos ver a profundidade da prova e podemos dar louvor a Deus que nos ajudou para enfrentá-la vitoriosamente no Seu nome.

 

Famílias inteiras viveram desmembradas por anos e anos; dezenas e centenas de irmãos se consumiram no exílio ou nas prisões. Posições sociais arruinadas, saúde destruída, afectos espezinhados: estas foram as consequências da perseguição, quando Deus, para glorificar o Seu nome e para cumprir os Seus planos maravilhosos, não quis manifestar uma libertação da prova.

 

Hoje podemos reconhecer que tudo foi para o nosso bem e que Deus sempre agiu com infinita sabedoria; ontem nos bastava saber que Ele era poderoso a nos libertar para ter coragem de servi-Lo ainda que Ele não nos libertasse.

 

Por vezes a prova era prolongada, levada até ao martírio, mas também nessa os filhos de Deus sabiam repetir: “Se não nos libertar, O serviremos igualmente”.

 

Lembro-me de um caro irmão da nossa comunidade de nome I.. Ele aceitou o Senhor no período da perseguição. Todos os que faziam uma decisão por Cristo, naquela época, estavam prontos e decididos a enfrentar as lutas e os combates. Também este irmão, cheio de zelo e de entusiasmo cristão, estava pronto a sofrer pelo Mestre.

 

Verdadeiramente o sofrimento não se fez esperar foi preso e logo repatriado juntamente com sua família. Ele tinha, na nossa cidade, uma discreta posição laboral, mas lhe foram tirados emprego, casa, residência e foi enviado para a sua terra natal onde estava desprovido de todas as coisas; portanto foi reduzido à miséria.

 

Este irmão não se desencorajou, antes logo começou a evangelizar Cristo aos seus conterrâneos. Ele aceitou essa prova como cumprimento do plano divino que queria a salvação das almas da sua terra. Em pouco tempo o Senhor recolheu no Seu aprisco um discreto número de ovelhas errantes: uma pequena comunidade surgiu naquela perdida localidade montanhosa.

 

Esta obra suscitou a reacção violenta das autoridades políticas do lugar. Estas tramaram uma conjura infernal contra o fiel servo de Deus e o mandaram prender. Foi feito comparecer, sob acusações malignas, diante do terrível tribunal fascista para a defesa do regime e ali, sem se poder defender, foi condenado a cinco anos de prisão. Uma amnistia reduziu a prisão para três anos e portanto por três anos o fiel irmão foi recluso numa horrorosa e insalubre prisão das Marcas, onde, entre outras coisas , foi submetido às vexações do capelão da cadeia, que em Itália representa uma terrível autoridade no seio das prisões.

 

Na prisão ele contraiu uma grave doença que naquele ambiente favorável teve possibilidade de desenvolver-se progressivamente.

 

Chegou o dia da libertação; este irmão regressou à sua família, à sua terra e, naturalmente, regressou também para aqueles que tinham aceitado Cristo pelo seu testemunho. Ele retomou, em suma, a sua actividade cristã repetindo com Paulo: « ... Eu não faço conta de nada e a minha própria vida não me é cara ».

 

Mas a sua actividade foi interrompida violentamente mais uma vez: preso e exilado, se encontrou novamente longe dos seus, do seu trabalho. Foi enviado para um campo de concentração e submetido a trabalho forçado. Por outros três anos o seu físico continuou a degradar-se na doença e nas provações.

 

Quando regressou à sua terra, era já a sombra de si mesmo; mas se a sua carne estava consumida, o seu espírito estava ainda mais ardente para o serviço do Mestre.

 

Levou de novo o entusiasmo do seu exemplo à pequena comunidade, inflamando os irmãos com a bênção do seu ministério.

 

Foi preso de novo e literalmente deixado a apodrecer numa prisão; sem processo, sem acusações o deixaram enfraquecer numa cela horrível... Dias e dias passaram sobre ele, enquanto a doença o consumia e o fazia sofrer. Um dia os algozes se aperceberam que naquele pobre corpo a vida estava a apagar-se: o libertaram. Não foi um acto de amor ou de piedade mas somente calculismo. Preferiram não assumir a responsabilidade da sua morte.

 

Os familiares foram buscá-lo; foi levado para casa, deitado num leito. Não havia mais vigor naquele corpo destruído, mas o espírito era poder para a glória de Deus e, de facto, poucos dias depois, continuando a louvar constantemente o Senhor, este caro irmão partiu desta terra para ir ter com Aquele que tinha amado mais do que a sua vida.

 

Ainda que não nos liberte...

 

Numa pequena localidade a pouca distância da nossa cidade tinha surgido uma pequena comunidade muito zelosa mas muito perseguida. Íamos frequentemente visitá-la e todas as vezes era necessário visitar os fiéis detidos pela polícia ou maltratados ferozmente pela população. Um dia as autoridades locais, no seguimento de ordens superiores, detiveram um irmão da pequena comunidade juntamente com a sua filha e os levaram, ambos, para as prisões da nossa cidade. Este irmão não era muito jovem e sofria do coração, a sua filha era uma jovem moça de cerca de vinte anos.

 

Foram retidos longamente em prisão e ali, privado do ar necessário e dos necessários cuidados, este irmão teve um agravamento do seu mal. Nenhuma misericórdia foi usada para com ele, antes, condenado ao exílio, foi enviado para um terra longínqua e inacessível, enquanto a filha, condenada à mesma pena, foi enviada para outra localidade separada. A polícia quis privar um doente da assistência da filha e uma moça da protecção do pai.

 

Eles não se desencorajaram e, embora a lonjura recíproca, a lonjura da família, a doença representassem uma dura prova, continuaram a realizar no seu coração que Deus era poderoso a libertá-los e que, portanto, se não os libertava queria glorificar de modo diferente o Seu nome.


A jovenzinha irmã se achou sozinha, num mundo hostil, longe dos seus, separada do seu pai. As bênçãos de Deus representavam o conforto da sua vida e a presença de Jesus a sua doce companhia; enquanto a oração era o único meio que lhe permitia sentir-se também perto dos seus, apresentando-os ao trono da graça divina.

 

Uma noite, como de costume, sozinha no seu quarto, se deitou: sonhou um doce mas duro sonho.

 

Via-se junto a seu pai e unidos percorriam um longo caminho; a companhia desejada era doce e agradável, mas, subitamente, seu pai a deixa e toma uma nova estrada e eis que ela se apercebe que o terreno por debaixo dos seus pés é dificultoso, enquanto aquele sobre o qual caminha seu pai é plano. A sua estrada aparece cheia de pedras e flanqueada de espinhos, aquela do seu querido pai, pelo contrário, nivelada e flanqueada de flores.

 

Seu pai afasta-se cada vez mais rapidamente dela e por aquele agradável caminho sobe, sobe, sobe cada vez mais alto.

 

Ela chama-o e quase suplica para voltar atrás para unir-se a ela que não quer ficar sozinha, mas seu pai continua a subir e a afastar-se...

 

A cara irmã acorda perplexa. Não sabe se aceitar aquele sonho como uma mensagem divina; mas bem rápido todas as dúvidas são superadas pela realidade; e ela recebe a fúnebre notícia que seu pai deixou este mundo cheio de espinhos e dificuldades para subir a estrada da glória para o céu.

 

Longe da filha, longe da família, o caro irmão continuou o combate da fé repetindo até ao fim: “Ele é poderoso a libertar-me, mas ainda que não me liberte, eu glorificarei o Seu nome”.

 

Hoje que os anos afastaram estes episódios transbordantes de heroísmo espiritual, nós podemos reconhecer melhor a ajuda omnipotente de Deus, que não se manifestou sempre mediante a libertação, mas que foi em todas as circunstâncias eficaz para confortar os combatentes no desafio e na prova.

 

 

Capítulo 2 - Ora nós sabemos que todas as coisas cooperam para o bem  

 

Todas as coisas cooperam para o bem...

 

Nós cristãos aceitamos incondicionalmente o princípio que a Bíblia, isto é, a Palavra de Deus, é verdade.

 

Esta confiança é exteriorizada nos nossos testemunhos, é codificada pelos nossos artigos de fé, é sustentada nas nossas polémicas. Sim, nós cremos que a Bíblia é verdade.

 

Quando, porém, as Escrituras afirmam as particulares verdades proclamadas por Deus, nós, precisamente nós cristãos, começamos a vacilar. Isto é, estamos dispostos e prontos a aceitar e crer em determinadas verdades mas não estamos igualmente prontos a crer em outras verdades. Estamos abertos para crer naquelas verdades, teóricas ou práticas, que estão ligadas à consolação, ao gozo, à bênção, mas não estamos dispostos a aceitar aquelas verdades que nos falam de dor, de sofrimento, de prova.

 

A afirmação do apóstolo Paulo na epístola aos Romanos faz parte desta última espécie.

 

Todas as coisas cooperam para o bem...

 

É fácil crer nesta declaração quando o nosso sentimento está aspergido de pétalas perfumadas, mas, infelizmente, não é igualmente  fácil crer quando diante de nós se apresentam circunstâncias ameaçadoras: perseguições, dores.

 

A verdade porém permanece sempre verdade, independentemente da atitude que nós assumamos perante ela, e nós podemos gozar o benefício inefável dela na medida em que a aceitarmos humildemente na nossa vida.

 

Muitos, hoje, não crêem na Bíblia e a combatem obstinadamente, mas nem por isso a Bíblia cessa de ser verdade; o único resultado dos inimigos dela é o de perder as bênçãos que a Bíblia oferece a todos os homens.

 

Ouvimos repetir frequentemente: “Eu não acredito no inferno...”, ou “Eu não acredito no Paraíso”. Mas estas palavras não destroem o inferno e o Paraíso e servem somente para fazer perder o temor do inferno e a esperança do céu àqueles que as pronunciam cinicamente.

 

Os irmãos perseguidos de Itália conseguiram abundantes bênçãos, porque souberam crer que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus.

 

Se nós olharmos para a prova, para a dor, para a perseguição, como se estas coisas fossem inimigos impiedosos da nossa vida, nós não podemos conquistar o bem que está conexo a estas coisas; mas se nós soubermos enfrentar estas circunstâncias, como necessidades benéficas, preparadas ou permitidas por Deus, nós colheremos certamente os pacíficos frutos de justiça gerados pela dor.

 

A fé dos cristãos não foi uma fé vacilante, porque a persuasão de ir ao encontro das bênçãos fez todas as provas róseas e todos os desafios ligeiros.

 

Nem sempre durante o período da perseguição pudemos entender o significado das provas; muitas vezes não nos foi possível reconhecer o bem contido nas dores sofridas, mas nem por isso, fé e persuasão cederam, porque sabíamos que o bem prometido por Deus pode aparecer muito tempo depois ou pode permanecer encoberto aos nossos olhos. Talvez nós não consigamos ver o resultado benéfico das circunstâncias dolorosas da nossa vida cristã e o Senhor repita para nós como para Pedro: “O que Eu faço não o sabes tu agora, mas o saberás depois”.

 

Não conseguimos ver, repito, o resultado querido por Deus, mas nem por isso ele não se manifesta, e nós, quando um dia comparecermos diante de Deus, poderemos conhecer o porquê e o significado de todas as coisas e então, perante os séculos, elevaremos o nosso salmo de louvor, repetindo lá em cima que verdadeiramente todas as coisas cooperam para o nosso bem, em harmonia com os planos divinos.

 

Disse que nem sempre, durante a perseguição, pudemos reconhecer logo ou claramente a bênção consequente às provas mas é necessário acrescentar que muitas e muitas vezes o plano precioso e benéfico do Senhor apareceu tão claramente e tão solicitamente que infundia nos nossos corações o mais vivo dos encorajamentos.

 

Vimos que muitas provas não tinham outro objectivo senão o de fazer-nos levar o testemunho e a pregação do Evangelho em lugares ou a pessoas que não podiam ser alcançadas diferentemente. Muitos e muitos lugares de degredo, para onde foram exilados os fiéis, foram alcançados pela pregação da verdade e hoje há diversas comunidades nascidas por esses testemunhos que falam do plano benéfico de Deus.

 

Autoridades, magistrados, agentes da segurança pública foram evangelizados exclusivamente porque as detenções, a reclusão, os processos nos puseram em condição de falar livremente e francamente do Salvador.

 

E a Palavra, nas prisões, não foi levada unicamente pelo caminho da perseguição?

 

Em Itália não é permitido evangelizar os reclusos porque somente os sacerdotes católicos têm acesso às celas das prisões, mas Deus abriu aquelas portas de ferro diante de nós. É verdade que elas depois se fechavam nas nossas costas, mas isso era somente para dar-nos uma mais ampla oportunidade de falar de Cristo aos infelizes pecadores que se encontravam encarcerados nesses lugares.

 

E nas prisões, lugares de tormento e de pecado, a Palavra de Deus teve o seu caminho: pecadores foram salvos e Deus baptizou também no Espírito Santo ali, onde ninguém pode chegar.

 

Lembro-me do testemunho simpático e significativo de um caro irmão da nossa comunidade. Este irmão foi preso múltiplas vezes e passou grande parte do período da perseguição entre a prisão e o exílio. Sempre cheio de fervor e de zelo, amava pedir a Deus: “Senhor se nesta comunidade tiver que haver mártires, concede-me a honra de ser o primeiro”. Deus não o atendeu nesta petição, mas hoje ele está igualmente com o Senhor. Os planos eternos não se conciliam sempre com os nossos desejos e os nossos pedidos.

 

Este irmão, durante uma das suas diversas detenções, foi posto na cela de um criminoso à espera de processo; era este um homem colérico e violento acusado de rixa à mão armada.

 

O caro irmão S. não demorou a falar do Salvador ao pobre encarcerado, mas este rejeitou duramente o testemunho. Tentou outras vezes, mas o resultado foi idêntico antes parecia que a Palavra de Deus provocasse a ira e a cólera do temível pecador.

 

O pobre irmão tornou-se bem rápido o objecto dos insultos e da furiosa cólera do seu companheiro de cela, mas ele nunca mudou o seu comportamento de amor, de doçura e de mansidão.

 

Um dia que S. orava ajoelhado junto da sua cama, o criminoso, fora de si, se lançou sobre ele, brandindo uma cadeira de madeira. Estava decidido a parti-la na sua cabeça para acabar com aquele homem que representava uma acusação à sua vida de pecado. Ele estava para fazer o gesto criminoso quando uma mão omnipotente, a de Deus, lhe segurou energicamente o braço: a cadeira caiu por terra.

 

A luta continuou ainda alguns dias, mas cada vez mais leve: o pobre pecador começava a ouvir a voz das obras do caro servo de Deus...

 

Um dia veio a capitulação; o criminoso se aproximou do irmão com doçura e confessou-lhe: “Reconheço que tu és verdadeiramente um filho de Deus! Reconheço que aquilo que tu praticas e pregas é a verdade. Queria aceitá-la, mas não posso!

 

“Por que não podes?” perguntou prontamente o irmão.

 

Porque eu não poderia suportar os escárnios e as perseguições que tu suportas” respondeu o pobrezinho, e depois prosseguiu: “Eu vejo que tu és o objecto dos insultos de todos e particularmente dos carcereiros; quando eles entram na cela e te encontram ajoelhado, cobrem-te de palavras malvadas. Eu não poderia suportar todas essas ofensas; no entanto creio que Jesus é o meu Salvador e queria aceitá-Lo; sim, queria aceitá-Lo com todo o coração, mas não posso, não posso...”

 

O pobre pecador arrependido estava repetindo com tom consternado: “Não posso, não posso...”, quando o poder de Deus caiu sobre ele numa gloriosa e dulcíssima visitação. Ele caiu sobre os seus joelhos e começou a gritar com toda a força dos seus robustos pulmões: “Senhor, tem piedade de mim; tem piedade de mim; tem piedade de mim: salva-me!”

 

A esses gritos fortes e prolongados acorreram os guardas, os serventes, os carcereiros e entraram na cela.

 

Compreenderam logo o que tinha acontecido e começaram a insultar o pecador penitente, mas ele já não se importava mais com eles e com as suas ofensas; tinha encontrado o Senhor.

 

A seguir Deus manifestou maravilhosamente a Sua ajuda para com ele e em pouco tempo readquiriu a liberdade. Cheio de gozo na salvação encontrada, regressou à sua terra e começou logo a dar testemunho do Redentor.

 

Todos ficaram maravilhados da sua milagrosa transformação e particularmente os seus familiares ficaram impressionados pela evidência da obra de Deus e o Espírito Santo encontrou um caminho aberto para operar. Hoje, nessa terra, existe uma pequena comunidade pelo sofrimento de um filho de Deus e pela sua fidelidade.

 

Sim, todas as coisas cooperam para o bem.

 

Quando medito o versículo de Paulo aos Romanos e a afirmação categórica que está contida nele, não posso deixar de associá-la, no pensamento, ao período da perseguição. Deus é verdadeiramente maravilhoso e sabe conceber planos que nos enchem de surpresa.

 

Lembro-me de um período particularmente duro na luta da perseguição e lembro-me de como, através dessa prova que parecia danosa para a igreja, o Senhor trouxe à luz bem e prosperidade para ontem e para hoje. As autoridades tomaram a decisão de privar o povo de Deus dos seus condutores; elas tinham conseguido identificar aqueles que, no meio dos fiéis, cumpriam um ministério e exerciam uma função directiva e por isso determinaram prendê-los, repatriá-los, exilá-los, com o objectivo de gerar a desorientação e portanto a paralisação da obra.

 

A prova foi verdadeiramente dolorosa, porque vimos, um após outro, eliminados todos aqueles que administravam a Palavra e que guiavam o povo, mas desta prova brotou, de maneira gloriosa, a bênção divina, porque enquanto os ministros da obra eram eliminados, já outros surgiam para tomar prontamente o lugar deles. Os actos de consagração se cumpriam um após outro e Deus selava esta disposição enchendo os corações de poder e de suficiência para o ministério.

 

Foi através desta circunstância que também eu, há cerca de vinte anos, embora jovem de idade e ainda jovem na fé, fiz o meu acto de consagração ao serviço de Deus. Senti-me chamado a tomar o lugar de outros que tinham sido presos e afastados e Deus me aprovou para ajudar-me nesta árdua tarefa.

 

A seguir também eu fui eliminado temporariamente do serviço e outros tomaram o meu lugar e assim Deus, mediante a perseguição dirigida particularmente aos obreiros do seu campo, soube chamar, suscitar e incitar um notável número de servos para o seu serviço.

 

Quero contar como foi chamado e preparado para a obra um destes obreiros nascidos pelo fogo da luta.

 

Este irmão foi evangelizado no período da perseguição. Ele tinha procurado ansiosamente a verdade por muito tempo e por isso aceitou o testemunho com entusiasmo sincero.

 

Ninguém lhe falou de reuniões, mas ele próprio fez questão de poder encontrar os fiéis, de poder louvar o Senhor.

 

Mas o irmão que o tinha evangelizado estava perplexo e titubeante e por fim sinceramente lhe declarou: “Nós somos perseguidos, as nossas reuniões são portanto perigosas, pois podemos ser sempre presos e encarcerados...”

 

Este irmão não sabia se as suas palavras seriam recebidas com agrado; mas com agradável admiração ouviu responder entusiasticamente: “Perseguidos, presos? Mas esta para mim é mais uma prova que estais na verdade: a igreja cristã sempre foi perseguida e eu não tenho temor de ser perseguido, juntamente com os cristãos, para a glória de Deus”.

 

Quis ir ao culto; fomos surpreendidos e presos e ele foi preso juntamente connosco. Após diversas semanas de prisão foi repatriado para a sua terra natal. Achou-se desde os seus primeiros passos da vereda cristã sozinho, longe da irmandade, apertado pela necessidade e no meio da luta da incompreensão e da perseguição, mas não se desencorajou. As experiências que tinha feito tinham suficientemente e profundamente confirmado o seu coração no caminho da verdade e portanto ali, na solidão e na prova começou a orar fervorosamente para ser revestido de poder divino. O Deus fiel não tardou a atender aquela oração sincera e o jovem irmão foi baptizado no Espírito Santo e separado para o ministério do Evangelho. Com toda a franqueza, no meio das incomodidades, da miséria e das provas, ele começou o seu trabalho evangelístico e ainda hoje, que passaram já dezoito anos, ele o continua com verdadeira capacidade espiritual.

 

Deus portanto soube multiplicar os obreiros, conseguiu fazer surgir as comunidades, conduziu o testemunho às prisões e diante das autoridades mediante as provas e as perseguições. Tudo isto nos confirma que "todas as coisas cooperam para o bem".

 

Não importa, repito, se este bem aparece ou permanece encoberto; ele existe e nesta confiança a nossa vida se deve render, na calma ou na perseguição, nos braços de Deus. Os irmãos perseguidos de Itália souberam compreender esta verdade preciosa nos dias da luta e Deus os pôde usar para cumprir os seus planos. Quando esta verdade é norma na nossa vida, força no nosso coração, tornamo-nos sempre os instrumentos dóceis dos planos divinos.

 

Sim, todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus e os nossos próprios perseguidores tiveram que ver e reconhecer que o seu poder e as suas providências não danificaram, antes ajudaram a igreja do Senhor no seu desenvolvimento e na sua prosperidade.

 

 

Capítulo 3 - Salas de reuniões

 

A esta altura do meu modestíssimo trabalho desejo apresentar alguns esboços que ilustram, indirectamente, a vida emocionante vivida pelos fiéis no período da perseguição.

 

Estes esboços nada têm de dramático nem são apresentados numa forma linguística que faça deles material de leitura amena. Eles são simplesmente o testemunho de algumas cenas de vida vivida e têm o objectivo de fornecer uma ideia precisa da moldura que enquadrava a actividade da igreja no período ao qual se refere este livreto.

 

Para seguir, direi, uma ordem lógica, apresento como primeiro, dentre estes esboços, aquele sobre as nossas “Salas de reuniões”.

 

Os cristãos que sempre se reuniram em salas amplas e confortáveis, que sempre tiveram ventiladores ou sistemas de aquecimento, porventura nunca imaginaram de que salas se tiveram que servir os irmãos de Itália no período da luta e da vida clandestina.

 

É necessário que diga, antes de qualquer outra coisa, que estas " salas " (desculpai-me se continuo a usar impropriamente este nome) deviam, o mais possível, esconder-nos dos olhos indiscretos dos nossos inimigos e do controlo das autoridades.

 

Não podíamos fazer escolhas demasiado cuidadas e as comodidades tinham de ser esquecidas, porque o primeiro requisito era o secretismo.

 

Portanto, as primeiras salas foram constituídas pelas habitações dos fiéis que moravam nos quarteirões mais isolados da cidade. Geralmente eram pequenos quartos pobres e sem ar, onde porém se amontoavam igualmente dezenas e dezenas de fiéis.

 

Respirava-se em esforço e não havia possibilidade de alguém se mover. Apertados uns ao lado dos outros, era necessário somente ter cuidado para ocupar o menor espaço possível, no entanto nestas pequenas salinhas, onde escorria pelas paredes a humidade do nosso hálito, estava sempre gloriosamente presente a bênção de Deus.

 

Saíamos desses lugares com os nossos casacos atravessados pelo suor, com as calças coladas às pernas, com as testas húmidas de suor e os rostos corados, mas com a alegria de nos termos reunido e de termos juntos encontrado o Senhor.

 

Dentre todos estes quartos lembro-me particularmente de um deles. Era uma pobre divisão de uma casa pequena e modesta na periferia; tinha de largura talvez três metros e não era mais comprido do que três metros e meio. O tecto descia perpendicularmente e a parte mais baixa podia ser quase roçada com a cabeça. O chão era de cimento.

 

Neste quartinho foram realizadas centenas de reuniões, interrompidas de quando em vez por uma prisão em massa operada pela segurança pública. Muitos encontraram o Senhor entre essas paredes e muitíssimos foram baptizados com o Espírito Santo.

 

Lembro-me de uma das operações da polícia efectuada enquanto nos encontrávamos reunidos no quartinho descrito.

 

Era um domingo e estávamos reunidos para uma reunião de oração. Os fiéis tinham chegado cada vez mais numerosos e todos os cantos, e todos os espaços tinham sido ocupados. As paredes escorriam literalmente água; o ar era pesado, mas tudo isto desaparecia debaixo da nuvem da glória de Deus que estava presente naquele lugar de um modo maravilhoso...

 

Nesta altura cedo a descrição a um irmão que se encontrava no exterior da modesta casa . Ele não tinha podido entrar e se tinha sentado sobre um ponto elevado distante uma centena de metros:

 

“Chegou a polícia”, contou este irmão, “e rodeou a casa de longe; parecia que tinham que fazer uma operação perigosa: os agentes estenderam-se no chão à espera de um sinal. De repente o comandante deu o sinal e todos, como um só homem, se levantaram e começaram a correr para a casa apertando o cerco em torno dela. Quando se aperceberam que não havia perigo ou resistência, abriram violentamente a porta e entraram... mas dado um passo para dentro, deram prontamente dois para trás: o ar era absolutamente irrespirável.

 

Então, com voz impetuosa e irada, nos ordenaram que nos levantássemos e saíssemos dali. Fomos obrigados a obedecer e a sair. Dez, vinte, trinta... O número aumentava cada vez mais sob os olhos admirados da polícia que não conseguia compreender como daquele barraco pudessem sair tantos indivíduos. Quarenta, cinquenta, sessenta, setenta...

 

"Mas como puderam" - gritaram – "entrar nesse lugar? Não tendes medo de ficar asfixiados?"

 

Mais de setenta saímos daquela espécie de antro, fornecido de uma pequeníssima janela que, aliás, estávamos obrigados a ter fechada para fazer ouvir o menos possível as nossas vozes. Mais de setenta, ou seja, sete ou oito pessoas por cada metro quadrado de espaço”.

 

Ó querido quartinho, quantas bênçãos tivemos reunidos dentro de ti! Quantas vezes temos pensado nas reuniões por ti hospedadas e temos pensado nelas com nostalgia!

 

Muitas das reuniões hospedadas entre as paredes amplas e confortáveis das salas de hoje estão privadas da bênção que enriquecia as reuniões de culto realizadas naquela salinha que nos dava humidade, calor asfixiante, falta de ar.

 

Infelizmente, estas pequenas salas de reuniões não estiveram sempre disponíveis, porque, com o aumentar das medidas de controlo da segurança pública e com o suceder-se das detenções, as casas disponíveis tornaram-se cada vez mais em menor número e um dia fomos obrigados a procurar noutro lugar, fora das casas, as nossas salas de reunião.

 

Diversos irmãos, fornecidos de bicicleta, puseram-se à procura nas zonas extremamente periféricas da cidade, de campos desertos, cavernas, grutas, bosques que de qualquer modo nos pudessem acolher.

 

Foram identificados diversos lugares aparentemente aptos para as nossas necessidades. Começámos assim o nosso êxodo nocturno e dominical para estas novas salas de reunião.

 

Um campo geralmente não consegue esconder como uma casa e, portanto, para alcançar do melhor modo possível o nosso objectivo tinham sido escolhidos campos ou localidades campestres longíssimos da povoação, das estradas e, portanto, da indiscrição dos passantes ocasionais.

 

Este critério de escolha nos obrigou, porém, a fazer todas as noites quilómetros e quilómetros de estrada, por vezes na escuridão mais profunda, e a superar terrenos perigosos e acidentados.

 

Lembro-me a este propósito da declaração de um polícia, numa noite que nos prenderam: “Todas as vezes que venho procurar-vos para vos prender, tenho que rasgar um par de calças! Como podeis encontrar estes lugares inacessíveis?”

 

Não posso esconder que o incómodo e o cansaço eram notáveis. Todas as noites era necessário enfrentar os mesmos perigos e o mesmo cansaço e após as reuniões, se se conseguia reentrar nas nossas habitações, se tinha de constatar que tínhamos ultrapassado notavelmente a meia-noite.

 

No entanto naqueles campos húmidos, sentados no chão e chicoteados por vezes pelo vento e pelo frio, nós gozávamos a mesma alegria dos cristãos das catacumbas.

 

Por vezes não era um campo mas uma caverna que nos acolhia entre os seus espectrais braços de pedra. Eram geralmente cavernas abandonadas que apresentavam o espectáculo desolador de um trabalho deixado a meio. Ali, sobre aqueles pedregulhos espalhados em ordem desordenada, entre aquele pó que nos cobria, nós nos sentíamos na nossa sala de reunião diante do Senhor.

 

Lembro-me, entre muitas, das cavernas de Via Ardeatina, com as suas grutas subterrâneas que usávamos para as reuniões de oração. Era necessário percorrer, para chegar lá, uma estrada que parecia nunca mais acabar, mas quando estávamos ali, que alegria, que bênçãos nos enchiam a alma e o coração.

 

As lembro de modo particular dentre todas, porque voltei diversas vezes para visitá-las. Elas tornaram-se, ironia do destino, monumento nacional, porque precisamente no coração destas cavernas, foram trucidados pelas tropas alemãs 335 Italianos.

 

Estes pobres infelizes estão agora sepultados no mesmo lugar onde foram mortos; no mesmo lugar onde nós louvámos o Senhor.

 

Entre os mortos estava também um crente da nossa comunidade, capturado juntamente com os outros reféns e trucidado com eles por represália. Eu já me tenho perguntado muitas vezes se esse caro irmão terá reconhecido, nesse lugar onde perdeu a vida, o mesmo lugar onde glorificou o Senhor.

 

Além das cavernas, como já disse, nos servimos de outras salas de reuniões, e entre estas estiveram  também grutas hospitaleiras. No seio da terra, iluminados por algumas tochas e por alguma pequena lanterna de bolso, fomos imitadores perfeitos dos cristãos das catacumbas. Nos sentíamos verdadeiramente em comunhão com eles, e esses lugares, nos quais não chegava nenhuma luz exterior e onde o ar não circulava, tornavam-se os mais sugestivos lugares de reuniões que se podiam imaginar.

 

Também as grutas estiveram disponíveis somente por um período de tempo e fomos obrigados a procurar outras "salas", outros lugares de reuniões.

 

Localidades inacessíveis, pequenos barrancos escondidos, bosques abandonados, praias fluviais inalcançáveis: tudo foi experimentado e tudo foi usado.

 

Os perigos e os sacrifícios eram postos fora das nossas considerações, porque o único objectivo era o de estar reunidos para juntos louvar o Senhor e oferecer o nosso culto espiritual ao Seu nome glorioso.

 

Não quero fazer pensar que esta contínua mudança de lugares de reuniões nos manteve longe da polícia. Não! Também nestes vários lugares éramos alcançados sistematicamente pelas autoridades executivas e detidos e encarcerados. Neste último caso as celas das prisões tornavam-se as nossas salas de reuniões e também nesses lugares de dor e de sofrimento o nosso canto de louvor se elevava afectuoso e sincero na presença de Deus.

 

 

Capítulo 4 - As autoridades evangelizadas

 

No período da perseguição o testemunho do Evangelho alargou-se de modo maravilhoso e chegou milagrosamente diante das autoridades e diante dos magistrados.

 

Quase todos os graus da magistratura italiana foram evangelizados pelos cristãos que se encontravam na dura prova, porque os nossos processos foram levados ao pretório, ao tribunal, à corte de cassação, diante do tribunal para a defesa do Estado....

 

Os nossos processos eram sempre interessantes e emocionantes; geralmente levavam um tempo notavelmente longo, porque abriam a porta ao testemunho do Evangelho. Durante este tempo os magistrados recebiam o testemunho claro, detalhado da salvação em Cristo.

 

Nem todos estes juízes receberam as nossas palavras benevolamente e nem todos foram justos e imparciais em relação a nós, mas mais do que um ou do que poucos ouviram e receberam as nossas palavras com manifesto agrado e nos mostraram o sentido da sua justiça.

 

Eu lembro-me de uns e outros e reconheço que Deus quis fazer chegar a sua palavra a todos e não somente para falar de salvação mas também de juízo e de justiça. Parece quase que Deus tenha querido aplicar as palavras pronunciadas pelo salmista: “Juízes da terra, sede sábios”.

 

O testemunho dos cristãos, além de falar de Cristo, falou a todos os magistrados do tribunal de Deus, do Juiz supremo, da justiça verdadeira. Isto é, lembrou a todos os homens, chamados a administrar a justiça, que sobre os seus juízos e sobre a sua autoridade estava e está a indestrutível autoridade de Deus, perante o Qual todos os homens, e portanto também os magistrados, devem comparecer para ser julgados.

 

Dentre todos estes magistrados, dois ficaram nitidamente presentes nas minhas recordações. Vejo-os dentre muitos de um modo mais distinto, direi mais próximo. O primeiro, uma simpática  figura juvenil, que conseguia conservar mesmo naquele período de intriga e de corrupção um são sentimento de justiça. Foi chamado diversas vezes a julgar as nossas causas e não teve temor de manifestar toda a simpatia que nutria pela obra de Deus.

 

Numa causa muito complexa, que envolvia na acusação cinquenta e dois cristãos, nos ajudou a conseguir a vitória na absolvição, iluminando-nos juridicamente para fazer-nos reconhecer e superar as ciladas da acusação pública.

 

Talvez a Palavra de Deus tenha alcançado o seu coração? Talvez o testemunho do Evangelho tenha feito brecha na sua consciência? Não sei! Após esse período de perseguição o perdemos de vista e só a eternidade nos revelará todas as coisas a respeito dele.

 

Eu espero, porém, que esse juiz benévolo possa encontrar benevolência perante o Supremo Juiz.

 

O segundo foi juiz apenas num dos nossos processos. Eu não posso dizer nada dos seus sentimentos ou das suas capacidades, mas posso dizer que apareceu aos nossos olhos como o homem vendido às oportunidades, isto é, um Pilatos em miniatura.

 

Ele sabia que muitas pessoas de alta posição desejavam a nossa condenação e portanto preparou a sentença e, por conseguinte, a condenação antes ainda da audiência.

 

Este processo foi particularmente emocionante. Uma grande sala da Comuna foi posta à disposição para hospedar esta causa que procuraram converter num espectáculo.

 

Estavam presentes, para assistir ao programa fora de série, as pessoas mais influentes do lugar.

 

A Potestade dessa Comuna, isto é, o chefe da Comuna, se constituiu acusador público e compareceu na audiência em "orbace", isto é, em uniforme fascista com uma larga faixa tricolor atravessando o peito.

 

Tudo tinha sido preparado para dar-nos em pasto à curiosidade e eventualmente ao escárnio público. Mas Deus se glorificou de um modo maravilhoso...

 

As perguntas do magistrado e as contínuas insinuações da acusação foram somente ocasiões favoráveis para apresentar e ilustrar amplamente e francamente a mensagem da salvação.

 

O público estava arrebatado pelas palavras que o Senhor punha nas nossas bocas e todos manifestavam de um modo evidente a sua aprovação: se tivessem podido, eu creio que nos teriam calorosamente aplaudido.

 

O testemunho foi dado até ao fundo e o nome de Deus foi honrado; mas o nosso juiz quis cumprir aquilo que tinha decidido: fomos todos condenados. Deus, porém, operou maravilhosamente e aquela condenação foi cancelada pela Sua mão. Eu espero que esse pequeno juiz de óculos, servo do regime e dos seus preconceitos confessionais, não tenha que comparecer diante d`Aquele que pode pedir-lhe razão da sua injustiça.

 

Não somente os magistrados dos vários graus foram evangelizados nesses dias, mas também altos funcionários de Ministérios, questores, oficiais da polícia e dos "carabinieri", oficiais generais da milícia fascista, prefeitos da província. As oportunidades se multiplicavam e aquelas mesmas portas, que pareciam irremediavelmente fechadas diante de nós, se abriam para oferecer-nos a possibilidade de levar o testemunho do Evangelho onde não teríamos podido chegar por vias normais.

 

Este novelo de autoridades militares e civis foram os nossos juízes e os nossos inquisidores, mas muitas vezes os papéis se invertiam e eles assumiam a posição de réus; a Palavra de Deus, nesse caso, tornava-se o seu severo acto de acusação. Eles eram sempre tomados por grande admiração ao ver a franqueza e a coragem dos cristãos; estavam habituados a ver as pessoas tremer diante deles e, pelo contrário, eis comparecer-lhes à frente indivíduos de baixas condições sociais e sem qualquer cultura, que não somente não tremem mas não perdem a fala e expõem com franqueza a sua fé, a sua esperança e a doutrina que professam.

 

Nenhum de nós pode dizer que resultado teve a evangelização das autoridades, também a este propósito se pode repetir: a eternidade revelará todas as coisas!

 

Porém, pode-se afirmar que através da perseguição se cumpriram os planos de Deus e as palavras de Jesus relativas à evangelização das autoridades. O testemunho foi levado aos grandes da terra e assim todos, nobres e plebeus, encarcerados e juízes, cidadãos e autoridades, ouviram a mensagem da graça.

 

Um verdadeiro desfile de autoridades era representado pela famosa "Commissione per l’assegnazione dell’ammonizione e del confino di polizia". Esta comissão era formada pelo Prefeito, por um general da milícia, por um coronel dos "carabinieri", pelo questor e por vários secretários.

 

Muitos cristãos compareceram diante desta terrível e temida comissão para serem condenados ao exílio e a vigilância apertada. Todos fomos condenados, mas eu creio que os verdadeiros condenados foram os nossos juízes que, repetidamente e pelos lábios de uma multidão de cristãos, ouviram o testemunho quente   e sincero da salvação. Lembro-me que quando fui chamado a comparecer (era então pouco mais que jovenzinho) se verificou um facto curioso: as coisas que começaram a debitar-me não se referiam à minha pessoa. Evidentemente o secretário tinha confundido os documentos e tinha preparado um acto de acusação privado de qualquer fundamento real.

 

Fiz notar que o acusado não podia ser eu, porque as coisas contidas na declaração não correspondiam. Ficaram todos confundidos...mas pronunciaram igualmente a condenação. Mas eu, nesse dia, sentia-me cheio de alegria porque tinha podido acrescentar a minha voz à dos outros e confirmar com o meu testemunho pessoal o testemunho que já tinham dado os outros irmãos.

 

Sim, as autoridades foram evangelizadas; o Evangelho que queriam sufocar fez ouvir a sua voz poderosa e quando, no dia de Cristo, os homens forem chamados a dar conta das suas obras e dos seus sentimentos, também aqueles que estiveram nos mais altos graus da hierarquia terão que confessar ter ouvido falar de Jesus por um povo humilde e pobre que eles maltrataram e perseguiram.

 

 

Capítulo 5 - A minha primeira detenção

 

A perseguição começava a encarniçar-se contra a igreja e muitos já tinham feito a experiência da detenção, dos insultos, das ameaças. Em repetidas circunstâncias as reuniões tinham sido interrompidas pela intervenção dos agentes da polícia e os fiéis reunidos no lugar, geralmente uma casa de habitação, transportados para a esquadra mais próxima.

 

Eu não tinha tido ainda esta experiência e julgava-me defraudado de um privilégio. Tinha sido sempre assíduo nas reuniões e sempre tinha continuado a minha actividade pública de cristão, mas os planos de Deus tinham-me mantido fora de semelhante circunstância. Quando a detenção era efectuada numa casa, eu me encontrava numa outra casa, e assim embora tendo presenciado regularmente às reuniões de culto, era poupado.

 

Mas finalmente, e este finalmente indica a ânsia de poder combater na linha da frente com todos os crentes, chegou a minha vez.

 

Estava numa pequena e muito pobre casa de um irmão residente na extrema periferia da cidade; casa que se compunha de um único vão destinado a todos os usos que geralmente são reconhecidos a uma casa.

 

Não éramos muitos; provavelmente a grande distância do centro da cidade, unida à incomodidade de caminhos mal traçados e sempre ricos de lama ou de pó, tornava este lugar, naquela época que marcava apenas o princípio da perseguição, o menos frequentado dentre os que estavam disponíveis.

 

Tínhamos iniciado a reunião de culto há cerca de vinte minutos e estávamos empenhados a cantar, com voz tão triste que parecia suspiro, um hino espiritual, quando com o ímpeto do furacão a porta foi aberta sob a violência de um empurrão vigoroso e, antes ainda que nos déssemos conta do que estava acontecendo, três ou quatro indivíduos, exaltados e violentos, nos mandaram suspender o cântico e pormo-nos de pé.

 

O mandamento era completamente supérfluo, porque a violência da acção tinha apagado o cântico nos nossos lábios e quanto ao pormo-nos de pé o tínhamos feito em obediência ao instinto.

 

"Segui-nos!" ordenaram os capangas, e logo acrescentaram: "Somos comandados pelo Grupo local".

 

Não eram agentes da polícia, mas fascistas enviados para o lugar por um dos muitos espiões dos quais naquela época se servia o regime ditatorial que oprimia a Itália.

 

Todos permanecemos serenos, apesar da intervenção dos fascistas poder significar a consumação de qualquer ilegalidade e de qualquer violência. As páginas da mais recente história italiana ainda pingavam sangue pelos comportamentos prepotentes dos exércitos negros e não havia nenhum de nós que ignorasse de quanto eram capazes, mesmo que só com o objectivo sádico ou intimidatório, os assim chamados "grupos locais", isto é, aqueles destacamentos e compartimentos que representavam o partido nos diversos quarteirões da cidade.

 

A nossa serenidade e a nossa tranquilidade produziram talvez uma impressão favorável sobre aqueles homens, porque, sem insistir mais no seu comportamento de violência, nos fizeram sair da casa e, sob os olhos curiosos da vizinhança, entre os quais porventura não estavam ausentes os do complacente delator; nos mandaram alinhar uns atrás dos outros; depois nos dividiram em duas filas e nos mandaram pôr a caminho.

 

Ao longo do caminho nos cobriram com os seus motejos e as suas chacotas, aos quais nós respondemos, por vezes com digno silêncio, e por vezes com oportunas citações bíblicas aptas para clarificar o fim da nossa esperança e da nossa fé.

 

Chegámos finalmente à sede do "grupo". Salas, salinhas, corredores; algumas mobiladas com luxo e elegância, outras abandonadas à incúria e à desordem; talvez umas para os hierarcas ou para as cerimónias mais ou menos oficiais, outras simplesmente para os inscritos ou para as actividades sociais; nós fomos deixados num pátio ao ar livre sob a vigilância de um capanga. Pouco depois começaram a acorrer os curiosos: graçolas azedas, ameaças violentas, tudo se deitou sobre nós e enquanto um nos prometia uma bofetada outro propunha à companhia dar-nos uma daquelas abundantes doses de óleo de rícino pelas quais, juntamente com os bastões, se tinham tornado tristemente célebres.

 

Ninguém nos fez nada, porque, soubemos a seguir, estavam à espera da decisão do fiduciário, isto é, do chefe do grupo. Ninguém nos fez nada, porque, como disse Jesus, nem sequer um cabelo da nossa cabeça pode cair por terra sem a aprovação de Deus e, portanto, sem que isso entre no plano de Deus.

 

Deus queria que o nosso exercício fosse progressivo e por essa vez nos fez conhecer apenas a emoção da detenção, a prova dos insultos e dos escárnios e a experiência das ameaças.

 

O fiduciário, depois de nos ter feito esperar ao ar livre por algumas horas, tomou uma benévola decisão: "Chamai os agentes da polícia da esquadra mais próxima", ele disse, "e entregai-lhes estes indivíduos".

 

Esperámos ainda um pouco de tempo, útil aos fascistas para continuar os seus escárnios, e depois chegou um agente da polícia. Mandou que lhe entregássemos os nossos documentos, transcreveu diligentemente os nossos dados pessoais e no fim sentenciou: "Podeis ir".

 

Quando saímos daquele lugar, estávamos todos alegres, mais que pela libertação tida, pela graça realizada em Deus por permanecer serenos e tranquilos na prova suportada pelo Seu nome.

 

Trepidantes e cheios de alegria, alcançámos uma casa onde sabíamos encontrar diversos fiéis e todos nos unimos para louvar a Deus nesta experiência e sobretudo pela ajuda e pela graça com que nos tinha sido pródigo.

 

 

Capítulo 6 - Um culto ao ar livre

 

Estávamos reunidos numa tarde de primavera, nas margens do Aniene, o turbulento afluente do Tibre que corre na extrema periferia da cidade. O lugar escolhido para as reuniões de culto era dos mais acolhedores: uma vasta bacia rodeada por espessas matas, que, enquanto nos isolavam da zona, aliás deserta, que corria à nossa volta, nos mantinham também num estado de recolhimento e de poesia.

 

Não era a primeira reunião que tínhamos nesse lugar e nunca nos tínhamos arrependido da escolha feita, apesar de que para aceder à bacia ervosa tínhamos que percorrer um longo pedaço de estrada e superar árduas zonas acidentadas. Naquele fim de tarde, entre o baixo salmodiar dos cânticos e o menos baixo das orações, chegámos àquele ponto da reunião que tudo cala para dar lugar à pregação da Palavra. Um jovem irmão leu pacatamente o salmo 129 e depois lentamente, mas com calor, começou a expor o seu sermão. Estava ainda nas primeiras palavras, quando os arbustos verdes da mata se dobraram violentamente e apareceram ao redor homens vestidos à civil. Aparecer e saltar como feras entre nós foi quase uma só acção. "Não vos movais, não fujais, ficai quietos", começaram a gritar exaltadamente, "Somos agentes da polícia; estão detidos".

 

Nenhum de nós pensava em fugir, antes, permanecemos todos quietos e tranquilos.

 

Sossegados pela nossa atitude os agentes, sem mais gritar, nos rodearam. “Agora segui-nos”, nos disseram.

 

O grupo era muito numeroso, e por isso nos dividiram em duas colunas e nos levaram, sob escolta vigilante, para o povoado.

 

Os agentes não estavam satisfeitos com a expedição; para chegar ao lugar onde estávamos reunidos tiveram que, além de cansar-se, sacrificar os seus sapatos e os seus fatos à lama, aos arbustos, e por isso ao longo do caminho descarregavam todo o seu mau humor com frases mordazes endereçadas às nossas pessoas.

 

Finalmente chegámos a uma ampla planície onde estacionava o resto do pelotão da polícia. Havia a esperar um carro de transporte suficiente para umas trinta pessoas. Daqui começou o transporte para a esquadra de polícia mais próxima, foram primeiro feitas subir parte das irmãs e levadas velozmente para o edifício onde tinha sede o posto de polícia que distava mais de um quilómetro do lugar.

 

Estas, tudo menos assustadas, cantavam ao longo do percurso: “Salvos estamos, não mais temas, por este caminho se chega ao céu...”

 

Não, caras senhoras, interrompiam os agentes de escolta, por este caminho se chega à prisão. Os agentes ignoravam uma verdade preciosa, a saber, que o caminho de Deus passa pela prisão, mas leva ao céu. Três, quatro viagens foram necessárias para transferir o grupo inteiro da  planície à esquadra.

 

Ali fomos amontoados num amplo salão, usado como refeitório para os agentes, e deixados à espera de ordens.

 

Enquanto nos entretínhamos alegremente e serenamente em conversa cristã entrou um indivíduo de rosto vermelho e de olhos penetrantes; começou a fixar-nos atentamente um a um; de vez em quando se detinha para um particular exame, diante de um irmão ou de uma irmã; então se inclinava e esticava o pescoço para a frente para concentrar a sua atenção de alto a baixo. Feito o exame de todos, recomeçou do primeiro e assim por diversas vezes. Nunca soubemos a razão dessa estranha observação.

 

Eu entretanto começava a sentir uma fome aguda, naquela época sofria estranhos distúrbios de estômago que eram provocados precisamente pela fome e comecei por isso a pensar naquilo que sofreria dali a pouco. Estava sem comer há muitas horas e não havia probabilidade de comer tão cedo.

 

Mas o Deus, que alimentou o profeta pelos corvos, enviou também a mim uma ajuda providencial e inesperada. O corvo desta vez teve a roupagem de um agente que, tendo permissão naquele dia para entrar mais tarde, foi ao refeitório consumir a sua ceia.

 

Tendo ficado curioso com a presença de tantas pessoas começou a pedir-nos explicações e a dar-nos, por conseguinte, a oportunidade de dar-lhe testemunho da verdade. Eu me encontrava entre os primeiros e entre os mais activos a responder às suas palavras. O jovem ficou vivamente sensibilizado e num rasgo de simpatia me ofereceu espontaneamente um pão com carne no meio; era quanto bastava para aplacar as mordeduras da fome e transferir o meu distúrbio doloroso.

 

Passaram diversas horas; começaram os habituais procedimentos burocráticos: entrega dos documentos de identidade, interrogatórios, etc.

 

Finalmente chegou a decisão do comissário: "as mulheres sejam libertadas, os homens pelo contrário sejam fechados nos quartos de segurança".

 

Para nossa boa ventura os quartos de segurança em uso naquela esquadra eram bastante amplos; mediam talvez quatro metros por cada uma das paredes e portanto, quando fomos divididos em grupos e postos 14 por 14 nas duas celas, não ficámos demasiado apertados.

 

Entrámos naquela cela por volta das duas da madrugada e após muitas horas desde a detenção, estávamos cansados e quase todos não comíamos desde as primeiras horas da manhã, mas ninguém mostrava cansaço e fome e todos concordámos em começar imediatamente uma reunião de culto: não temíamos detenções e não estávamos agitados por nenhuma trepidação; a polícia nos tinha oferecido um local e uma oportunidade para realizar uma reunião em completa liberdade.

 

Lembro-me claramente do texto do sermão: "Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida" (Apocalipse 2.10).

 

Todos fomos encorajados e consolados pelas preciosas palavras do Senhor.

 

Terminada a reunião, visto que não se podia pensar na ceia (no quarto de segurança dão de comer somente uma vez por dia poucas gramas de pão com carne de cavalo ensacada), pensámos em dormir. Neste momento surgiu o primeiro problema.

 

Em nenhum quarto de segurança existe uma cama e naquele, como em todos os outros, havia somente o clássico "tavolaccio", isto é, uma tábua de madeira da grandeza de 2x2 metros, cravada na parede e sustentada na extremidade oposta por um cavalete colocado num plano mais baixo, para dar uma posição inclinada à própria tábua. Cerca de 25 cm mais acima estava cravada na parede uma segunda tábua de largura talvez 30 cm. que corria por todo o comprimento do "tavolaccio"; esta segunda tábua representava o travesseiro dos infelizes que ali caíam.

 

O tavolaccio não era a cama mais desejável, mas, em todo o caso, representava igualmente um meio para tentar conseguir um pouco de descanso, mas como alojar 14 pessoas sobre dois metros de madeira?

 

Decidimos fazer uma espécie de turno: alguns se acomodariam sobre a tábua, outros no chão; após algum tempo trocaríamos os respectivos leitos miseráveis.. E assim fizemos e assim chegámos às primeiras luzes da manhã afortunadamente não distantes da hora em que iniciámos o nosso incómodo descanso.

 

Com a luz poderíamos começar o nosso dia: lavar-nos, arranjar-nos. Chamámos os agentes, mas estes nos responderam que estas coisas não se usam nos quartos de segurança, porque os que estão detidos nestes não devem sair por nenhuma razão enquanto não se decide a sua sorte, a saber, ou liberdade ou prisão judicial. Por este motivo, acrescentaram, existe aquele balde de madeira, dentro da própria cela; e, assim dizendo, nos indicaram um objecto imundo que jazia num canto do quarto, que agora à luz do dia nos aparecia no seu real, horrível estado.

 

Paciência! Resta-nos uma só coisa a fazer, dissemos uns aos outros, e começámos uma nova reunião de culto. Não me lembro de que modo tínhamos conseguido ficar em posse de uma cópia de um pequeno Novo Testamento (todas as outras coisas nos tinham sido tiradas, juntamente com os cordões dos sapatos e o cinto das calças) e portanto, se tínhamos que nos servir apenas daqueles hinos que sabíamos todos de memória, podíamos nos servir, no sermão, da escritura.

 

O dia passou em santa letícia; as horas passaram nas conversas cristãs e nas orações e de tarde realizámos uma terceira reunião de culto.

 

Não nos deram muito de comer e nem quiseram nos passar o que as irmãs, desde as primeiras horas da manhã, levaram à esquadra (Naqueles dias não existia uma organização, mas tudo era organizado de modo perfeito pelo Espírito de Deus), mas o Pai celestial nos alimentou abundantemente das palavras da Sua boca.

 

Durante o dia fomos interrompidos frequentemente pelas visitas de controlo dos agentes: estes abriam a porta, contavam-nos, diziam-nos alguma frase de escárnio, e depois voltavam a fechar a porta diante de nós.

 

Chegou a noite e já nos preparávamos para começar um novo turno sobre o "tavolaccio", quando a porta se abriu violentamente e um nome foi pronunciado imperiosamente. O irmão chamado seguiu o agente; esperámos muito tempo, mas não voltou. É demasiado tarde, dissemos, para uma transferência para a prisão judicial, talvez por esta vez nos deixam em liberdade.

 

A porta se abriu de novo: um segundo nome: "Por que nos chamam?" perguntámos ao agente “Para serem postos em liberdade”, foi a resposta.

 

Um após outro os irmãos começaram a sair. Chegou também a minha vez (fui o penúltimo) e fui levado perante um funcionário que me cobriu de ameaças e ao qual naturalmente dei a única e simples resposta: "Eu devo fazer a vontade de Deus" e depois fui conduzido ao corpo de guarda onde me foram restituídas todas as coisas que me tinham sido tiradas: cordões, cinto, lenços, carteira, dinheiro, etc.

 

Era noite quando saí à rua, mas encontrei ali a esperar-me, diversos outros irmãos e irmãs que tinham vindo esperar-nos.

 

Esta experiência estava passada; glorificámos juntos o Senhor e unidos nos preparámos para atender aquilo que havia ainda de vir.

 

 

Capítulo 7 - Prisão Judicial

 

Veio um período que parecia de trégua para a igreja: uma amnistia ampla e generosa interrompeu a minha condenação a dois anos de vigilância especial; os desterrados voltaram às suas casas; outros, como eu, foram perdoados e todos juntos passámos diversos dias de alegria puríssima na comunhão fraterna.

 

Muitas famílias reabraçaram os seus entes queridos, exilados longe; outras dissiparam a trepidação que as mantinha em ânsia pelos seus familiares sujeitos a liberdade vigiada, condenação que mantém continuamente, aqueles que são sujeitos a ela com um pé na prisão e outro fora, e todos exultámos pelas cadeias quebrantadas e pela consolação de rever muitos fiéis longamente separados de nós por causa do seu desterro.

 

Parecia que tinha chegado, se não o fim, uma longa trégua na perseguição, mas poucos dias foram suficientes para convencer-nos do contrário.

 

Encontrava-me numa destas alegres noites em casa da família L... para presidir uma reunião de culto. O pai e a filha maior tinham voltado recentemente do degredo; ele se encontrava nessa noite seriamente doente, enquanto sua filha tinha ido presenciar uma reunião de culto que se realizava num bairro baixo da cidade.

 

Em casa estava somente a mãe que recebeu extensamente todos os fiéis que afluíram à sua casa.

 

Apesar da doença do marido estava cheia de alegria. Não só tinha abraçado os solitários regressados do degredo, mas para o dia seguinte esperava também a volta das suas duas filhas menores que terminavam precisamente naquele dia a sua pena de prisão de três meses cada uma.

 

Estas duas jovens irmãs tinham tido esta condenação por terem sido julgadas culpadas de transgressão à "vigilância especial" e tinham passado grande parte da sua detenção em celas em comunas, unidas a mulheres criminosas da pior espécie. Elas tinham encontrado esta prova por presenciar uma reunião de culto.

 

Mas a condenação já tinha chegado ao seu término, os três meses tinham passado; a família, após várias e aventurosas vicissitudes, voltava a compor-se e por isso a velha mamã estava transbordante de serena alegria cristã.

 

Os diversos fiéis se acomodaram o melhor que podiam na não muito grande cozinha, que representava a divisão da casa mais distante da porta de entrada (geralmente se usavam estas precauções para não fazer ouvir ruídos no exterior) e eu abri o serviço de culto: levantámos em voz baixa alguns hinos, depois, prostrados em oração, elevámos os nossos louvores e as nossas petições; mais um hino e a seguir alguns testemunhos. Após estes iniciei o sermão: li o salmo 144 e tomei como texto os primeiros dois versículos. Mas estava apenas na introdução, quando um toque prolongado, além de toda a conveniência, da campainha fez-me compreender que alguma coisa estava a acontecer; em todo o caso, não me interrompi, mas pude pronunciar apenas poucas outras palavras, porque um clamor de vozes exaltadas e de passos apressados deteve o sermão sobre os meus lábios.

 

Da porta uma voz sonora e irada exclamou: "É Bracco que fala".

 

Em poucos minutos a casa foi literalmente invadida por um pelotão inteiro de agentes da polícia. Eu os conhecia quase todos porque vinham da esquadra do bairro em que eu morava.

 

"Segui-nos!" foi a ordem imperiosa. Era inútil demorar; nos pusemos a caminho e em poucos minutos nos encontrámos todos no local da esquadra.

 

Começáram as práticas às quais já estávamos habituados e compreendemos logo que as intenções do comissário eram mais severas. De facto eu, juntamente com quatro irmãos (um depois foi libertado na manhã seguinte) e a velha mamã juntamente com uma irmã, fomos retidos e levados para o rés-do-chão para ser internados nos quartos de segurança.

 

Enquanto esperávamos pacientemente a execução das práticas relativas ao nosso encarceramento, desceu para ver-nos um severo funcionário com o qual muitas vezes tinha tido relações, em consequência da perseguição, e que sempre me tinha parecido um terrível mastim. Ele olhou para mim e depois disse-me duramente, mas com um tom de benevolência, "Bracco te arruinaste!" O meu aspecto, tudo menos assustado, deve porém tê-lo convencido que não era um indivíduo completamente equilibrado e por isso, sem acrescentar mais nada, virou as costas e afastou-se.

 

Pouco depois fomos chamados pelos agentes de custódia e fomos convidados a tirar os cordões dos sapatos, o cinto das calças, e a depositar tudo aquilo que tínhamos nos bolsos.

 

Eu tinha, junto com outras coisas, uma cópia do Novo Testamento e Salmos e isso me havia de servir para experimentar a fidelidade de Deus. De facto, no período que todos os fiéis cosiam páginas da Bíblia no interior das suas roupas ou as colavam entre as solas dos seus sapatos para ter a alegria de podê-las levar para o interior das prisões onde era impedida, do modo mais absoluto, a leitura das Sagradas Escrituras, eu me tinha recusado a seguir estas medidas de prevenção e tinha repetidamente declarado: "Sinto que Deus me ajudará a levar a Sua palavra também ali onde é combatida."

 

Eu por isso deixei o meu pequeno Novo Testamento no bolso do casaco. Concluído o inventário dos objectos entregues, se aproximou de mim um graduado da polícia para submeter-me à revista prescrita. Apalpou as minhas roupas, os meus bolsos e chegou com a sua mão ao bolso do casaco onde tinha deixado o precioso livrinho.

 

" Isto não se pode ter!" me disse resolutamente.

 

"É simplesmente uma cópia do Novo Testamento". Respondi eu com uma ingenuidade naturalíssima naquele momento.

 

Não me respondeu, continuou o seu exame, chegou pela segunda vez com a sua mão ao bolso inchado do casaco e só então repetiu: "Isto não se pode ter!" "Mas é a Palavra de Deus", insisti eu com simplicidade.

 

O agente foi vencido, abriu-me a porta da prisão e me convidou a entrar. Passei a soleira do quarto miserável e sujo com uma alegria no coração: tinha a Sagrada escritura comigo.

 

Os meus companheiros seguiram-me pouco depois e juntos dividimos a alegria da vitória e dividimos também o jejum e a insónia. Não nos deram de comer e não conseguimos dormir sobre aquela única cama comum de tábuas fixadas na parede, sem colchão e com uma única coberta rasgada e imunda.

 

No dia seguinte, às primeiras luzes do amanhecer, sentimos alguém chamar por nós e com nossa grande surpresa ouvimos a voz da irmã que tinha voltado há pouco do degredo.

 

"Onde estás?" perguntámos.

 

"Na cela ao lado da vossa".

 

"Porquê?"

 

"Ontem durante a noite", ela nos disse, "os agentes da polícia voltaram novamente para me prender como co-responsável da reunião à qual eu estava ausente. Queriam prender também o papá", ela continuou, "mas a sua grave doença o fazia intransportável".

 

Continuámos a conversa até uma interrupção patética. As filhas libertadas da prisão, encontrada a casa em desordem e no abandono e conhecendo o motivo da pressentida surpresa (enquanto faziam a viagem de volta tinham recebido um aviso no Espírito), chegaram à prisão para ver e beijar a irmã e a mãe. Foi-lhes consentido por poucos instantes e assim interromperam brevemente a nossa conversa.

 

Chegou a tarde, a porta de repente se abriu: "Vamos sair?" nos perguntámos admirados. A nossa admiração era das mais legítimas, porque essa saída se referia simplesmente a uma transferência do chamado "quarto de segurança" para a "prisão judicial".

 

Devolveram-nos apressadamente e sem ordem os objectos que tínhamos depositado e nos levaram para fora, sob escolta armada, onde estava à nossa espera uma carrinha fechada, em chapa cinzento-verde.

 

Fomos todos tomados a cargo por outros agentes da polícia e carregados, como mercadoria fora de uso, numa carrinha já repleta de criminosos recolhidos nos diversos quarteirões da cidade.

 

Na rua estava à nossa espera um pequeno grupo de cristãos que queriam tributar-nos de longe a sua saudação afectuosa e fraterna.

 

A carrinha fez um percurso vicioso pela cidade e finalmente chegámos à dita prisão judicial que nos devia receber.

 

Foram primeiro "descarregadas" as mulheres na repartição reservada a estas e ali nos saudámos com as irmãs encorajando-nos mutuamente no Senhor. A seguir veio a nossa vez; a carrinha passou uma cancela; depois uma outra, uma outra ainda e parou. Descemos juntamente com aqueles que se tinham tornado os nossos companheiros e a pé ultrapassámos outras cancelas, outras portas de ferro até aos escritórios onde se deviam fazer as formalidades do costume:

 

·    Impressões digitais.
·    Dados pessoais.
·    Depósito do dinheiro.

 

Fomos depois conduzidos a uma pequena cela para o depósito dos objectos proíbidos. Depositámos cordões, cintos, alfinetes, fivelas e tudo o que tínhamos nos nossos bolsos. Posteriormente nos fizeram despir para que os indumentos pudessem ser submetidos a um controlo cuidadoso.

 

Tudo, tudo foi amontoado sobre uma mesa diante dos nossos olhos.

 

Fomos convidados a revestir-nos; logo depois de concluída esta operação, eu estendi com naturalidade a minha mão para pegar no meu Novo Testamento.

 

"Não podes pegar nele!" me disse o guarda chefe sem aspereza.

 

"Porquê? – perguntei – É a Palavra de Deus". E ao falar assim mostrei o livrinho aberto no frontispício. O severo funcionário recebeu a minha naturalidade com benevolência e me respondeu: "Deixa-o agora, to levarei depois à cela.. " E esse homem foi veraz. Deus tinha premiado a confiança que eu tinha colocado na Sua ajuda omnipotente.

 

Acompanharam-nos a um armazém e carregaram-nos do nosso equipamento carcerário: coberta, lençol, tigela de alumínio, colher e garfo de madeira, copo de alumínio, etc.

 

Com a noite avançada, fizemos a nossa entrada na nossa nova residência. Vale a pena descrevê-la: um pequeno quarto de comprimento 3, 50 m e largura 1, 50 m; fornecido de um pequeno beliche com três camas em ferro e quatro pequeníssimos colchões cheios de palha. Uma janela no alto com barras de ferro robustíssimas e com persianas de madeira puxadas para cima, um banco de madeira e num canto um grande balde de terracota.

 

No meio, suspensa a um fio eléctrico, uma lâmpada de cor azul.

 

Essa era a nossa morada durante 23 horas do dia. Uma hora do dia, de facto, está reservada para deixar os prisioneiros apanhar " ar " e isto acontece em pátios húmidos e sombrios, e as outras 23 horas têm que ser passadas na cela onde não existe uma casa-de-banho, não existe água corrente, onde não há ar suficiente e onde não há sequer espaço suficiente para nos movermos. No entanto, tudo tem que cumprir-se ali, em detrimento do pudor, da higiene, da moral. Nós nos apercebemos da existência de três camas e fizemos notar a falta da quarta, mas o guarda nos explicou que o espaço não consentia a existência de uma quarta cama.

 

"Se quiserdes", acrescentou, talvez com despeito, "um de vós pode ser transferido para outra cela".

 

Preferimos permanecer juntos e cedo nos apercebemos que entre dormir no chão e dormir sobre a cama não havia diferença. A dureza era idêntica, os insectos eram abundantes em ambos os lugares.

 

Naqueles dias se encontravam na mesma prisão diversos irmãos condenados anteriormente e excluídos da amnistia; procurámos logo, por meio dos guardas, enviar-lhes mensagens, mas foi um trabalho inútil, porque todos se recusaram em colaborar e tudo o que pudemos fazer foi só trocar entre nós uma ou duas vezes um pouco de comida que providencialmente tínhamos recebido do exterior. Digo providencialmente, porque a sopa diária e os dois pães, que nos eram dados todos os dias não eram absolutamente comestíveis. Os dias passavam lentamente e com monotonia que teria sido oprimente se a presença da Escritura não nos tivesse oferecido a frequente possibilidade de interrompê-la. Tudo se desenvolvia mecanicamente e uniformemente: acordar, limpeza da cela, ração, controlos diários e nocturnos das barras, distribuição da água, retirada das imundícias; toda a vida está encerrada dentro destas coisas que enclausuram a vida mais do que quanto possa fazer a própria cela.

 

Nós crentes naturalmente tínhamos acrescentadas a estas coisas oração, leitura do Evangelho, conversas cristãs, e também ali brilhava o raio luminoso da esperança e da alegria.

 

Chegou o dia do processo; Deus interveio de um modo prodigioso; fomos milagrosamente absolvidos; o juiz declarou, coisa excepcional para aquela época, que orar a Deus segundo os ditames da própria consciência não constituía crime.

 

Voltámos para a prisão cheios de alegria pela ajuda divina e, porque não, cheios de embriaguez pela iminente libertação, mas havia reservada uma surpresa. À tarde não fomos postos em liberdade. Pedimos explicações e nos foi respondido: "Fostes absolvidos pelo magistrado, mas agora estais à disposição da Questura central."

 

Outras perguntas que dirigimos nos fizeram saber que a questura tinha o direito de manter-nos em prisão, à sua disposição, pela duração de seis meses. No fim deste período podia pedir a nossa transferência para um quarto de segurança para depois reenviar-nos no dia seguinte novamente para a prisão; podia assim começar um outro período de seis meses.

 

Com este procedimento burocrático podíamos ser mantidos em estado de detenção por anos e anos. Esta experiência nos fez ver claramente quais são os recursos de um regime prevalentemente policial. Ele pode operar sempre acima dos direitos humanos, das leis, da magistratura. O Seu poder estatal é terrível.

 

Mas Deus tinha começado a operar e ele não deixa a meio a obra que quer levar a termo. Nunca soubemos aquilo que o Senhor fez naqueles dias, mas na tarde do dia seguinte estávamos novamente em liberdade, recebidos com gozo pelos irmãos e todos juntos alegres no Senhor.

 

 

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